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sábado, 22 de março de 2014

ALODANDO NO COMO (M1487 - 101PM/2013)

O DO-27 n/c 3459  que viria a acidentar-se na ilha do Como

Na manhã do dia 17 de Novembro de 1973 o Centro de Operações do GO1201 (Grupo Operacional 1201), na BA12, recebe um pedido de evacuação, vindo de Catió, tendo de imediato destacado um DO-27 para efectuar essa missão. A equipa de alerta era constituída pelo Fur. Ivo Mota, da Esq. 121, e pela Enfermeira Paraquedista Giselda Antunes e a eles se juntou a Enfermeira Paraquedista Natália Santos, acabada de chegar à Guiné e que, por ser "pira", acompanhava as "veteranas" nas evacuações, para "ganhar calo".

Estava-se já na época pós-Strela, que tinha trazido diversas restrições à navegação aérea. Entre a opção de subir para 10.000' (pés), descendo depois à vertical do destino, o piloto optou pela outra opção possível, que era a de efectuar todo o voo a baixa altitude (50' a 100' sobre o terreno - o correspondente a 15 a 35 metros).
Para evitar zonas mais perigosas o Fur. Mota decidiu então seguir ao longo da linha de costa, sobre a água, contornar a ilha de Como (refúgio do PAIGC), subir o rio Cumbijã e, atingido Cufar, dirigir-se em linha recta para Catió.

O voo decorria normalmente a baixa altitude; à passagem por Bolama tiveram a oportunidade de ver o navio que fazia o transporte de víveres e material, que se dirigia para sul. O DO-27 não parecia ressentir-se de qualquer problema resultante do incidente da véspera. O avião sofrera um choque com um pássaro que lhe tinha acertado no hélice, mas a inspecção feita ao avião no intervalo dos dois voos não tinha detectado qualquer anomalia.

O DO-27 no lodo do Como    Foto: Col. Cor. Miguel Pessoa

Quando sobrevoavam os tarrafos ao lado da ilha de Como, o avião resolveu "apagar-se" - o motor parou repentinamente, obrigando o piloto a uma reacção rápida para preparar uma aterragem de emergência. Dada a baixa altitude a que seguiam, a única solução era "poisar o estojo" na direcção em que seguiam, em pleno tarrafo, o que o piloto fez - diga-se - com bastante êxito, pois o avião ficou atolado no lodo, mais ou menos direito, tendo os ocupantes saído ilesos desta aterragem (ou mais propriamente "alodagem"). Quem esteve na Guiné sabe bem as diferenças no contorno das margens (no mar ou nos rios) entre a maré cheia e a maré vazia. Neste caso era hora da maré baixa e a água, tendo descido, deixara o tarrafo coberto de uma espessa camada de lodo.

Foto: Col. Cor. Miguel Pessoa

Rapidamente, os ocupantes abandonaram o avião procurando, atascados no lodo, alcançar uma zona de águas mais profundas, onde pudessem, mergulhados, ficar menos expostos a olhares da margem e ser eventualmente "pescados" pelo navio que pouco antes tinham visto a navegar naquela direcção.
Claro que a aproximação do navio por que tinham passado e o facto de saberem que a Base detectaria a sua ausência lhes transmitia algum optimismo. Nem por isso deixava a Giselda de empurrar a “pira” Natália para dentro de água quando ela, ainda inexperiente e não se apercebendo da gravidade da situação, se tentava levantar para ver melhor à volta... Tentavam os dois não dar a entender à “periquita” o perigo que todos corriam, pois não ganhavam nada em pô-la ainda mais nervosa.

O piloto tinha decidido entretanto regressar ao avião para recolher a arma que o DO-27 transportava dentro de uma caixa que servia de banco ao pessoal que era transportado na parte de trás. Dada a dificuldade de progressão, a Giselda teve que o acompanhar para o ajudar, pois ele já evidenciava algumas dificuldades em regressar ao local em que tinham deixado a Natália.
Ter-se-iam passado duas horas desde a aterragem forçada no local quando começaram a ouvir o barulho de um motor. Detectaram então uma embarcação do tipo Zebro que se aproximava do local, atraída pela silhueta do DO-27 atolado. Desconfiados, continuaram metidos na água pois a distância não permitia uma identificação eficaz do pessoal que se aproximava. Sofreram uma grande desilusão quando viram o zebro afastar-se da margem. Passados uns largos minutos ouviram novamente o barulho do motor. Com o regresso do zebro, chegando agora a uma distância mais curta, puderam verificar que os tripulantes eram brancos, o que os levou a chamar a sua atenção. Rapidamente foram recolhidos e levados para o navio de guerra a que o zebro pertencia e que se aproximara entretanto do local.

Na BA12, entretanto, alertados pela falta de reportes do DO-27, tinham mandado descolar um Fiat G.91 que, seguindo o percurso mais provável voado pelo DO veio rapidamente a localizá-lo no tarrafo. Imediatamente a Força Aérea pediu a colaboração da Armada, que deslocou uma segunda embarcação para o local.
Terá então havido aqui alguma falta de comunicação pois o segundo navio atarefava-se na busca do piloto no local quando este já se encontrava no primeiro navio. Mas mais vale a mais do que a menos...

As tentativas de recuperação na maré cheia    Foto: Col. Cor. Miguel Pessoa


Foto: Col. Cor. Miguel Pessoa

Foto: Col. Cor. Miguel Pessoa

O facto é que, depois de recuperada pela Armada, mesmo sem dispor de material (perdido no acidente) a enfermeira Giselda ainda foi fazer a evacuação a Catió, num outro avião entretanto disponibilizado, que "serviço é serviço"... Não tendo comido nada durante todo o dia, acabou por ser salva por umas castanhas que transportava no camuflado e que tinham resistido ao banho…
No dia seguinte, uma LDG da Armada iniciou os trabalhos de recuperação do avião, aproveitando a fase da maré alta, que permitiu a aproximação ao local. A elevação do avião com a grua infelizmente não correu tão bem como se pretendia. Na primeira tentativa o DO acabou por cair novamente na água, ficando ainda mais danificado... Provavelmente foram maiores os estragos nessa altura do que na altura da queda! Não foi no entanto importante, pois o destino dele seria sempre a sucata. A deformação da estrutura e a corrosão da água do mar tinham provocado danos irreparáveis no avião.


 
Os estragos visíveis após a recuperação do avião       Foto: Col. Cor. Miguel Pessoa
Foto: Col. Cor. Miguel Pessoa

Podemos imaginar que o fim feliz deste acontecimento se deveu a um conjunto de factores favoráveis que podiam muito bem não ter acontecido:
-O facto de o avião voar bastante baixo, não sendo observável das tabancas existentes;
-A aproximação final do avião ao ponto de queda com o motor parado, não tendo, pelo seu silêncio, alertado ninguém próximo (detectou-se depois uma tabanca com população presumivelmente hostil a cerca de 700 metros);
-A existência de um navio da Armada, em missão de vigilância próximo do local, o que permitiu a rápida recuperação dos ocupantes do DO-27.



NOTA: Este episódio fará parte de um livro em elaboração sobre a actuação das Enfermeiras Pára-quedistas nas guerras de África

Texto: Giselda Antunes e Miguel Pessoa (piloto do Fiat G.91 que localizou o DO-27 acidentado)

sábado, 18 de janeiro de 2014

A NOITE MAIS PERIGOSA DA MINHA GUERRA (M1386 - 21PM/2014)

Dornier DO-27 à descolagem em Guileje

Recordando a minha estadia de aviador por terras da Guiné, as missões preferidas eram as de DO-27, em especial as destinadas a apoiar os vários Batalhões, CAOPs, COPs e correlativos. Permitiam-me ver e conviver com o pessoal das “terras do fim do mundo”, ou como disse um escritor com laivos de Rambo e de memória baralhada, dos “cus de judas”.

Fazer embarcar os eventuais passageiros e carga, verificar se o peso a transportar estava dentro dos limites, verificar se os sacos do correio estavam na aeronave (a diferença entre ser bem ou mal recebido), descolagem logo pela fresquinha enquanto o calor não apertava, aterragem na sede do Batalhão, apresentação ao “Big Boss”: 
-Bom dia Sr. Major, apresenta-se o Tenente Piloto Aviador M.
E continuava: “... Conforme definido superiormente, o meu Major tem esta aeronave à sua disposição durante as próximas 4 horas ou 7 aterragens, o que se esgotar primeiro, para a utilizar na área do seu Batalhão da maneira que muito bem entender. A 8ª aterragem já será em Bissau, disponha como lhe aprouver...”

Dependendo da vontade, coragem ou preguiça do Major, umas vezes acabava por ficar as 4 horas sem nada fazer, ler um livrito à sombra de alguma árvore mais frondosa. Outras vezes passadas que ainda não eram duas horas, já tinha ido e vindo e tornado a ir e a vir... esgotado as aterragens e “ tenham um bom dia... ” rumo a Bissau. 
O limite das 7 aterragens tinha a ver com o acumular da fadiga do piloto versus a segurança de voo, já que havia pistas que nem ao mais pintado lembraria, alguns metros de largura, uns 200 de comprimento, algumas em curva, por vezes com vacas à mistura, o seu final com uma barreira de arame farpado ou mesmo a porta do quartel em cimento armado, “se não conseguir travar paciência, entro-lhes pela casa adentro, não me perguntem é pelo correio, que afino...”
E foi assim que conheci Bula, Binar, Biambe, Burutuma, Bigene, Bambadinca, Buba, Bedanda, Bissorã, Bissum, Binta… isto para só falar dos Bês.
Se a maior parte das vezes tudo corria pelo melhor, de vez em quando a coisa complicava-se, umas vezes por julgarem que o DO-27 era algo semelhante a uma Berliet, outras vezes por alguns Majores mais atrevidos não saberem contar de 1 a 7 (ou fingiam?) e em vez de reservarem a 7ª aterragem para o regresso à sua sede do Batalhão resolviam ainda ir aqui, ou ali, ou acolá; depois puxavam dos galões para que lhes fosse concedida uma aterragem extra: 
“ Ó nosso Tenente olhe lá, estou-lhe a dizer, vá-me levar de volta que aqui quem manda sou eu!!!”
E quando davam por ela já estavam no meio da placa da Base de Bissalanca, a deitar fumo pelas orelhas e a servirem de gozo aos Cabos da Força Aérea (FAP).

A partir Abril de 1973 e devido ao aumento da intensidade do conflito, deixei o DO-27 e passei a voar apenas o Fiat G.91. E se durante o resto da comissão e por inúmeras vezes lá fui passando por situações mais ou menos arriscadas, a noite de 23 de Junho foi certamente aquela em que o perigo me rondou mais de perto.
Recordemos, que havia já quase três meses que os mísseis Strela tinham aparecido nos céus da Guiné e até já tinha visto alguns a passarem bem perto. O pessoal do Guileje já tinha rompido aquele famoso cerco e executado a tal “retirada estratégica”, os de Guidage lá se tinham aguentado, o Exército já me tinha embrulhado num processo de averiguações por causa de umas Berliets estragadas lá para os lados de Binta, e o pessoal de Gadamael já se tinha espalhado e reagrupado. A calma a reaparecer aos poucos.

Nós, os da Força Aérea, é que andávamos um pouco baralhados da cabeça, porque das duas uma, ou a matemática tinha deixado de ser uma ciência exacta, ou então algo não batia certo.

Tudo isto porque apesar de no “Solar do Dez”, “Pelicano”, “Bento” e restantes cafés da má-língua constar que estávamos apavorados de medo e já não voávamos, no dia-a-dia continuávamos a executar missões atrás de missões, a um ritmo bem mais acelerado que anteriormente.
Uma coisa era certa, estávamos fartos de circular nas vizinhanças de alguns quartéis, a abrir clareiras na mata, a partir madeira e fazer barulho, fartos dos que diziam que já não os apoiávamos, (certamente deviam ser surdos, com tanto rebentamento ali mesmo nas suas barbas) e fartos dos que, sem nos saberem dar informações precisas, exigiam que bombardeássemos todas as matas à volta dos seus quartéis. Até que não podia ser. Cada bomba de 750 libras fazia um buraco no chão, onde podia caber à vontade um Unimog. A Guiné arriscava-se a ficar como um “queijo suíço”. Por outro lado estávamos absolutamente convencidos que as bases de fogo para os ataques a Guidaje, Guileje e Gadamael estavam situadas para lá da fronteira, já no território dos países vizinhos.

A razão era simples, se cada granada de morteiro pesava à volta de uns 15 quilos, cada ataque com 200 granadas (parece que era a medida standard) equivalia a utilizarem 3 toneladas de munições, demasiado peso para andar a ser transportado às costas e ainda por cima por trilhos pelo meio da floresta. Precisavam de algumas viaturas de carga e uma estrada por onde circular.
Por essas razões e apesar de não termos os passaportes em dia, o General Spínola até já nos tinha deixado ir cumprimentar os nossos amigos ao estrangeiro, a Kambera, Kumbamori e Kandiafara.

Os de Kambera não tinham sido muito calorosos a "receber-nos", ficaram chateados por lá termos ido logo a seguir ao almoço. O pessoal devia estar a dormir a sesta. Tinham lá alguns cubanos a passar férias que nos devem ter gritado alguns piropos do tipo “gilipollas de mierda... no me toques el coño”...

E até aconteceram umas cenas engraçadas e com uma certa ligação bíblica, um amigo meu ao querer afundar a barcaça que fazia a cambança do rio (que teria uns 90 metros de largura) errou a pontaria e acertou... no rio. Ainda assim não tinha havido nenhum problema. Durante alguns segundos e tal como Moisés quando quis atravessar o Mar Vermelho, a água desapareceu por completo, ficou só o fundo lodoso bem à vista. Depois, quando a água regressou tipo tsunami, foi a vez da barcaça desaparecer.

Em Kumbamori tínhamos participado numa excursão conjunta com o pessoal de terra. Sabem como é aquele ditado, meias só para as pernas, uns a trabalhar e outros a ficarem com a fama e o proveito.

Já os de Kandiafara tinham-nos "recebido" muito bem, com “fogo-de-artifício” e tudo. Ficaram surpreendidos já que não esperavam que viéssemos de tão longe só para os cumprimentar, grande alegria por nos verem, a foguetada parecia daquelas festas lá para o Minho, no fim até nos agradeceram, tínhamos lá deixado 36 buracos (ainda que um pouco grandes). Num futuro próximo bastava-lhes juntar um “Drive Range” e um Bar e tinham ali de imediato dois belos campos de golf. Até já estou a imaginar, o “KANDY COUNTRY CLUB (Members Only)”.

Voltando ao sábado 23 de Junho, era necessário fazer diminuir a tensão acumulada nos últimos tempos. O pessoal estava a ficar um pouco “cacimbado” (se fosse hoje dizíamos “com stress pós-traumático”) pelo que, muito em segredo foi planeada uma grande operação envolvendo todo o pessoal do Grupo Operacional. Pilotos, mecânicos da linha da frente, pessoal da manutenção, bombeiros e enfermeiras pára-quedistas, para o caso de uma eventual evacuação.

Como sabem, toda a operação que se preze tem que ter um nome de código que a identifique, ainda pensámos em “Granito” ou “Basalto”, logo nos disseram que operações com nomes de pedras nem pensar, estavam reservados para algum VIP, optámos por algo mais singelo: “Guerra é guerra e que ninguém se balde”. 
O sinal para o início da movimentação das tropas seria dado com a chegada, tão discreta quanto possível, de um avião Noratlas vindo de Lisboa. E ele acabou por aterrar em Bissau ao alvorecer do dia 23 de Junho, com a sua carga ultra-secreta, estacionando em local fora do habitual para não dar nas vistas, descarregando de imediato inúmeras caixas de madeira devidamente acondicionadas e tapadas para que ninguém visse com que tipo de munições iríamos atacar o inimigo. 
Logo pensaram os mais politizados que devia ser alguma nova arma secreta, provavelmente proibida pela Convenção de Genebra. Tinha de ser algo bem pior que o napalm, que, ao contrário do que constava nos cafés, até nem era proibido (só o passou a ser a partir de 1983). 
E que impropérios diria lá na sua rádio argelina aquele gajo de voz grossa quando soubesse da marosca?

Sem preocupações com todos estes pruridos, de imediato a máquina militar se pôs em movimento, ordens e contra-ordens à boa maneira portuguesa, os do QP a mandar, os Milicianos a vergar a mola. Durante a tarde instalaram-se os assadores típicos da FAP (meio bidon a trabalhar a carvão e a combustível de avião JP4), descascaram-se as batatas, prepararam-se o tinto e as saladas... Ao inicio da noite e após um very-light para sinalizar o local do objectivo, ouviu-se finalmente o sinal de chamamento para o ataque, “Horrendo, Fero, Ingente e Temeroso”.

Rapidamente manobrámos pelo fogo e pela manobra, tal como tínhamos aprendido nos compêndios militares, as sardinhas saltavam das caixas de madeira para os assadores, daí para o pão ou prato conforme o treino do combatente. Tiro e queda, limpar a arma e re-municiar de imediato, as “bazucas da Sagres” em disparos sucessivos, os invólucros a espalharem-se por todo o lado, as ordens a ecoarem: “Ninguém manda alto ao fogo que o inimigo tá bravo”. 
A noite correu pelo melhor, comeu-se, bebeu-se e conviveu-se como só se conseguia conviver nas noites africanas.

À volta dos assadores encontrámo-nos quase todos. O Coronel, os Majores (um deles do Exército, sortudo, fazia de oficial de ligação), Tenentes, Furriéis, Cabos e Soldados, que na Força Aérea sempre foi assim, “serviço é serviço e conhaque é conhaque”.
Ausências notadas foram a do nosso Comandante, Tenente-coronel Almeida Brito, o Maj. Mantovani Filipe (nosso oficial de ligação junto do QG), os Furriéis João Baltazar e António Ferreira e o Cabo Cóias, todos eles abatidos por mísseis Strela há menos de dois meses. 
Já me esquecia, faltou também o meu amigo Miguel Pessoa. Até tínhamos ficado um bocado chateados com o tipo, tinha deixado um avião todo partido lá no meio do mato e com medo de ser admoestado tinha passado uma noite escondido e fora de casa, quando afinal nós até lhe queríamos oferecer umas férias na Metrópole.
E mais, já com o bilhete no bolso e tendo conseguido algures uma garrafa de espumante, nem sequer a tinha bebido com os amigalhaços... avarento, semítico e mal agradecido! 
Mas afinal não era de estranhar que volta e meia se notasse uma ou outra "ausência" a estes eventos, já que na Força Aérea íamos todos à guerra, todos os dias, do Coronel ao Alferes, do Sargento ao Cabo, quer fossemos do QP ou Milicianos, homens ou mulheres.

Voltando ao combate da Bissalanca, uma verdade indiscutível é que depois de uma sardinhada é sempre necessário uma bebida forte, branca de preferência, sem a qual a digestão se torna lenta e difícil. Lá para o fim do repasto, o 1º Cabo Hélder, um dos meus mecânicos do Fiat G.91, chamou-me a um canto para que provasse a aguardente especial que a família lhe tinha mandado lá da terra. Apenas saído desta prova e já o nosso amigo e futuro bloguista Victor Barata, não querendo ficar mal visto perante o pessoal das aeronaves de caça (sempre as rivalidades), me apresentou um medronho de primeira. E depois foi o Miguel e o Mário, e o Correia, igualmente Cabos da Linha da Frente e a quem eu todos os dias confiava a vida ao entrar para um Fiat G.91 por eles devidamente abastecido, municiado e inspeccionado. Cada um deles a tentar demonstrar que os bagaços das suas terras eram bem melhores que os restantes.

Por volta da meia-noite, a batalha estava terminada, o inimigo completamente destroçado, era tempo de ir dormir, que no dia seguinte e apesar de ser domingo, a outra guerra continuava. 
Só que depois de ter passado quase um ano a dormir no “Biafra” da Base, a minha cama estava agora a uns bons dez quilómetros de distancia, tinha passado a viver em Bissau. As razões que me levaram a fazer a troca foram duas: o ter constatado que nos últimos seis meses só tinha jantado “francesinhas” e, já que vivia na base, estar permanentemente de serviço, com alvorada às 05:30 (... já que moras na base ficas de alerta!!)

O regresso a casa não tinha qualquer problema, já que tinha como meio de transporte a minha moto, uma bela, potente e roxa Yamaha 200 a 2 tempos, comprada com 16 notas da Metrópole, ali para os lados do que chamávamos a Av. da Liberdade (a que ia do Palácio do Governador ao cais).

Cabe aqui um outro parêntesis para informar que a primeira vez que andei de moto foi no dia que a fui buscar ao stand. Ao pretender saber como se metiam as mudanças o vendedor tão assustado que não ma queria vender. Só as D. Marias entregues ali mesmo e no momento o descansaram. “Ó homem deixe-se de merdices, abra lá a porta do stand e saia-me da frente”.
E assim entrei na confusão do trânsito de Bissau.

Voltando à história, ainda estive uma meia hora recostado naquelas grandes valas que existiam na Base para escoar a água das chuvas, a ver se conseguia contar as estrelas, que a maior parte delas não paravam de oscilar. A ideia era tentar alinhar os gyros e decidir se havia de me meter ao caminho ou não. O problema não era o balão, que nesse tempo não existia, nem as estrelas aos saltos, mas sim o estranho caso da estrada estar a ficar ondulada, tipo jibóia (e não me venham cá dizer que não há jibóias na Guiné, que eu até as vi). Após profunda meditação e analisando os prós e os contras, resolvi meter-me ao caminho.

Lembro-me apenas de sair à porta de armas e de algum tempo mais tarde ter passado junto a um ou dois quartéis que existiam à beira da estrada, poucas referências para o trajecto de cerca de dez quilómetros. Enquanto circulava de gás à tábua, o meu pensamento não parava de me alertar para que ao chegar ao destino tinha que travar, travar... travar. 
E assim aconteceu, para além dos mosquitos, moscardos e correlativos a esborracharem-se com fragor no capacete, consegui fazer o percurso sem bater em nada nem em ninguém (ou não fosse eu um piloto de caça).

A terceira referência da viagem foi a porta do meu apartamento onde, a travar, a travar, acabei por vir a bater já muito devagarinho, mas ainda assim com algum estrondo. E tão contente fiquei de ter chegado (e parado) que nem sequer me lembrei que, como passo seguinte, tinha de pôr os pés no chão, trambolhão da moto abaixo, a 0km/h.

Na manhã seguinte fui voar com um braço todo entrapado e umas pastilhas para as dores, tomadas numa auto-medicação bem à revelia do médico, que um dos ombros estava em mau estado.
Felizmente que foi um dia muito calmo, acabei por só fazer uma missão, 40 minutos de voo, 2 bombas de 750 libras algures na Guiné, mais 2 buracos dos grandes, os que sabiam que os continuávamos a apoiar devem-nas ter ouvido... os outros certamente que não.

Hoje, passados 40 anos o vício das motos ficou, trambolhões só dei mais um, também a 0 km/h.
E ficou a saudade dos bons momentos passados na Base da Bissalanca.

Um Abraço,
António Martins de Matos
Ten PilAv da BA12


NOTA: As memórias do Gen. Martins de Matos foram publicadas no livro "Voando sobre um ninho de Strelas" disponível através da loja do Pássaro de Ferro


sábado, 11 de janeiro de 2014

FUZILEIRO POR UM DIA (M1374 - 11PM/2014)

Dornier Do-27

A minha missão era simples, consistia em voar até ao quartel do Cacheu e aí fazer embarcar no DO-27 um Oficial dos Fuzileiros que ia comandar (de cima) uma operação.

E assim foi, depois de perguntar ao homem do Serviço Postal Militar (SPM) se havia alguma carga de oportunidade para aquele quartel e metido o saco do correio a bordo, lá segui rumo à pista do Cacheu. Viagem sem história, a pista nem era mázita, lá me apareceu o Fuzo para comandar a operação, o restante pessoal já tinha saído nos botes (acho que os fuzileiros lhes chamam outra coisa, para mim são botes) rio acima em direcção à Caboiana.

Cabe aqui um parêntesis para dizer como as “coisas da guerra” funcionavam: O oficial comandante da operação, normalmente Major, Capitão Tenente, nestes casos de marinheiros, levava todo o seu equipamento, prancheta, punaises, mapas plastificados, marcadores, correctores, lápis e borracha, enfim, todo o material necessário e suficiente para que, em cima dos ditos mapas, pudesse ir desenhando a evolução da operação.
O rádio, os auscultadores e os sacos de enjoo eram fornecidos pela FAP.

A missão do piloto consistia em voar até à área das operações e a partir daí, ir seguindo as direcções que o douto passageiro indicava, mais para a esquerda, mais para a direita, mais alto, mais baixo, tão baixo também NÃÃOOO, que me assustei... e por aí fora. Parecendo fácil, não tinha nada de difícil.
E o passageiro lá ia comunicando com a tropa no chão, pedindo informações e dando ordens e indicações, umas vezes em perfeita harmonia, outras vezes em completo desentendimento.

Com o decorrer das operações o aviador ia-se apercebendo de algumas incongruências, que volta não volta iam aparecendo. Por vezes o passageiro perdia-se. O sinal era quando começava a dar voltas ao mapa como se fosse um volante. Por vezes a tropa nem sempre estava onde dizia que estava. E como disse num outro texto, se havia “comandantes” que davam de imediato pela “falcatrua”, havia outros que eram completamente enganados e nem davam por tal. 
Essas incongruências não incomodavam o piloto. Se o homem estava ali para ser enganado, o problema era dele, só que, se por qualquer motivo, era preciso chamar os aviões de alerta para darem um apoio de fogo imediato, nesse momento a coisa complicava-se. O não ter a certeza do local por onde a tropa estaria estacionada era um pesadelo dos grandes, dos muito grandes. 
A partir desse momento o “passageiro” calava-se e era o piloto do DO-27 que tomava o controlo da guerra, esperando a chegada dos Fiats, encaminhando-os para o local, dando-lhes a perceber onde estavam “os bons e os maus”. A maneira fácil de proteger os nossos, era voar em círculos apertados à sua (deles) vertical. Não gostavam os de baixo, mas era a única maneira de não levarem com uma roquetada. À segunda volta, o passageiro começava a gastar os sacos de enjoo. Às vezes não chegavam, seguia-se o plástico que continha os dados da guerra e terminava com o próprio mapa.

Voltando à história.

Descolados da pista do Cacheu, lá fomos nós em direcção à Caboiana. A missão dos Fuzos consistia em patrulhar alguns afluentes da margem esquerda do rio, dois botes aqui, outros dois acolá. “Operações normais”, a coisa a correr bem. 
Eis senão quando desataram todos aos tiros, granel, durante alguns minutos ninguém se entendeu. Nós cá de cima sem saber quem tinha emboscado quem. 
Quando a coisa serenou, foi hora de contabilizar os estragos. Os Fuzos tinham um ferido. 
Logo o Comandante da Operação deu por terminada a progressão, regresso imediato dos botes ao Cacheu, e, acto seguinte, pediu-me se não me importava de aguardar que o ferido chegasse ao quartel afim de ser transportado de imediato para Bissau. “Claro que não, estou aqui para ajudar”, cinco minutos depois já estávamos aterrados no quartel do Cacheu à espera do ferido.

Foi aqui que a coisa se complicou.

Como a tropa para retirar da Caboiana ainda levava algum tempo (tinham que recolher algum pessoal que andava por lá espalhado), alguém sugeriu que saísse um bote do quartel do Cacheu afim de ir buscar o ferido. Meu dito meu feito. Até que outro alguém, voltando-se para mim, perguntou: “Ó Tenente, quer vir connosco no bote?” E eu, periquito da merda, devia era estar calado, logo disse: “Claro que quero”.
Saiu-me, peço desculpa, era jovem e não pensava...

E pronto, um bote, três Fuzos e um piloto, três G-3 e a minha Walter PPK calibre .22, lá fomos rio Cacheu acima em direcção à Caboiana.
Vejam só, podia ser em direcção ao Pelicano, ou à casa do Mário Soares em Pirada, ou ao meu amigo libanês de Bafatá de quem não me lembro o nome, mas não… em direcção à Caboiana!!!!!

Ao princípio e enquanto subíamos o rio a coisa até correu bem, era como andar de barco ali pela baía de Cascais. Claro que os Fuzos não se podiam comparar às Tias da Linha, mas o motor era potente, já me estava a imaginar no ski...
O pior foi quando entrámos pelo afluente do rio Cacheu, riozito de merda, nem 20 metros de largura teria, os Fuzos a meterem bala na câmara, velocidade reduzida, o menor ruído possível, encostados ora a uma margem ora à outra. Não tinha a ideia que o tarrafo fosse tão alto, lá de cima a coisa parecia bem diferente. No mínimo eram dois metros de arbustos, mesmo ali junto à água.
E o meu pensamento: “Se está por aqui algum turra escondido nem precisa de me dar um tiro, agarra-me à mão pelos colarinhos e pronto... estou feito. E como explicar um piloto averbado num bote de fuzileiros… se calhar ainda levo uma porrada a título póstumo.”

Eis que de repente e numa das curvas do riozito, descobrimos um outro bote onde vinha o ferido. Um pequeno alívio, a servir de consolação, pelo menos já não tínhamos que ir mais em frente. Xiça...
Chegou o ferido, sorridente, mas com um sorriso estranho. Um tiro tinha-lhe furado a bochecha e partido um dente, a bala saiu sem mais estragos. O sacana devia ter a boca aberta, houvesse euromilhões na altura e saía-lhe de certeza.
O regresso foi no mesmo ritmo. Silenciosos até chegar ao rio Cacheu e depois gás à tábua que se faz tarde.

E pronto, regressei ao meu ambiente, o admirável ar. Lá levei para Bissau o Fuzo da bochecha furada e dente partido. Foi uma experiência cinco estrelas, mas para fuzileiro chegou, que isto de andar entre o tarrafo tem que se lhe diga.

Um Abraço,
António Martins de Matos
Ten PilAv da BA12


NOTA: As memórias do Gen. Martins de Matos foram publicadas no livro "Voando sobre um ninho de Strelas" disponível através da loja do Pássaro de Ferro

sábado, 4 de janeiro de 2014

MIGs, MIRAGEs E MIRAGENS (M1361 - 01PM/2014)

Quando os amigos que passaram pela Guiné se juntam à volta de uma mesa, logo as histórias e recordações brotam de imediato. A emboscada, a mina, os periquitos, as bajudas, as noites de confraternização, a G-3, a Kalash... e por aí fora. E volta não volta, vem à baila o tema dos MiGs.
Que tinham sido vistos aqui e acolá, certamente pilotados por cubanos, por pilotos da Guiné Conacri ou mesmo do PAIGC, treinados na Rússia, na Líbia ou em Paio Pires, blá, blá, blá...

Falou-se muito de hipotéticos voos sobre o nosso território e até houve quem os tivesse visto a sobrevoar Bissau. A nós, pilotos, o assunto não nos podia deixar indiferentes. Não podíamos ser apanhados de surpresa, tínhamos que estudar as características do inimigo, ver onde eventualmente poderíamos ser mais fortes e colmatar os pontos mais fracos. Lá concluímos que, a existirem, os aviões adversários deveriam ser uma das inúmeras variantes do MiG-17, de fabrico russo, de características semelhantes aos nossos F-86 e utilizados por praticamente todos os países sob influência da então URSS.

MiG-17 com cores do Vietname do Norte    Foto: Bubba73/Wikipedia
Na Base de Monte Real já tínhamos ensaiado combates ar-ar entre o F-86 (simulando o MiG) e o G-91, e rapidamente chegámos à conclusão que, a baixa altitude, um F-86 (de melhor manobrabilidade) facilmente abateria um G.91. A única maneira do G.91 sobreviver era furtar-se ao confronto. Verificámos igualmente que os MiGs-17 ainda estavam a ser utilizados no Vietname e que tinham obtido algumas vitórias sobre caças americanos F-105, aeronaves muito mais modernas e sofisticadas. 

F-86 (esq) e G.91 (dir): um duelo que perdurou mesmo depois do fim da guerra   Foto: Arquivo BA5

O assunto era de tal modo sério, que acabou por ser levado às instâncias superiores.

Como solução, a FAP propunha a compra imediata de novos aviões, que substituíssem os G.91, e a escolha recaía numa aeronave de fabrico francês, os Mirage III. Não por serem superiores aos aviões americanos da altura, mas porque a França era um dos poucos países que ainda nos vendia armamento (no caso dos AL-III até já não se comprava à unidade, era mais ao quilo). Cabe aqui um parêntesis para esclarecer que uma “compra imediata de aviões” levaria no mínimo uns dois a três anos a ser concretizada. Como estávamos em 1970, teríamos MIRAGEs lá para o início de 1973. No meio deste desconforto de nos podermos encontrar cara a cara com um MiG-17, o que nos tranquilizava era não haver qualquer confirmação fidedigna de que o país vizinho dispusesse de aviões daquele tipo.

Mirage IIIE      Foto: US Defense Images

Cá pela minha parte várias vezes fui incumbido de ir voar junto à fronteira, a ver se via algum. Nunca os enxerguei. E deixem-me dizer-vos “ainda bem”, porque tendo o péssimo hábito de fazer perguntas, uma vez calhei a perguntar aos meus superiores, o que deveria fazer caso os avistasse: abatê-los, assustá-los, pirar-me, assobiar para o lado, eventualmente cumprimentá-los ? Resposta do meu superior, “depois logo se vê”, como se tal fosse possível. Num minuto tudo estaria iniciado e concluído. Se, por um lado, nunca tinha encontrado nenhum MiG, nem por isso as minhas buscas tinham sido sempre em vão. Uma das vezes encontrei um avião grande à vertical de Bissorã, um DC-7, seguia de sul para norte. Lá fiz a fatídica pergunta aos meus superiores “que fazer?”. Quando a resposta chegou, já o tipo tinha deixado a Guiné e entrado pelo Senegal adentro.

Era assim a guerra da altura. Sem radar que nos indicasse os intrusos, qualquer avião, "avioneta", helicóptero ou similar podia atravessar o espaço aéreo da Guiné, sem que dele tivéssemos conhecimento. Só um olhar ocasional poderia dar algum alerta… 
E com a época seca então era um descanso, ninguém via nada, à excepção do pessoal de Aldeia Formosa. Esses estavam sempre a ver OVNIs. Ao princípio ainda os tivemos em conta, mas depois foi como a história do “Pedro e o Lobo”, fartos de lá ir e nada encontrar. 
Deixámos de os ouvir.

Em conclusão, 500 missões pelos céus da Guiné, para cima e para baixo, para a esquerda e para a direita e nunca vi nenhum MiG!!!

Passados todos estes anos e ao recordar o tema, penso que a história da ameaça dos MiGs foi demasiado empolada, erro iniciado aquando do caso do sobrevoo de Bissau, mal interpretado pelos analistas da altura. Senão vejamos:

Para situar o assunto, diz o Carlos Matos Gomes e Aniceto Afonso que o sobrevoo a Bissau dos MiG-17 se deu a 13 Fevereiro 1970, e que estes sobrevoaram igualmente a Base de Bissalanca. De acordo com os nossos estrategas, o significado da aparição deste avião era claro: “A FAP estava em inferioridade, pelo que foi decidido comprar em França uma bateria de mísseis Crotale e que um dos objectivos da missão Mar Verde fosse a destruição dos MiG-17”.

Dito e feito.

Interessante o raciocínio do Estado Maior de então: a FAP em inferioridade, em vez de se ir comprar o tal novo avião que a FAP já tinha pedido, que pudesse enfrentar os MiG, e/ou um radar que cobrisse o espaço aéreo da Guiné, resolverem antes comprar um brinquedo para o Exército. Até porque, sem o dito radar, a identificação dos alvos continuava a ter que ser feita “a olho”. A ameaça com que os pilotos se debatiam, em vez de diminuir, aumentava... Não só tínhamos que nos haver com as antiaéreas do inimigo, como ainda passávamos a estar sujeitos a uma Crotalada amiga. O nosso slogan de guerra estava cada vez mais certo: “Deus nos livre da antiaérea amiga, que da inimiga livramo-nos nós”!... 
O meu amigo Pereira da Costa, artilheiro convicto, que me perdoe a “boca”.

Os Crotale foram efectivamente comprados, mas só chegaram a Portugal já depois do fim da guerra.

Quanto aos MIRAGE, com um raio de acção capaz de facilmente atingir Conacri, ficámos a vê-los tipo miragem, lindos que eles eram! Já me estava a ver no meio das aventuras do “Michel Tanguy e do Laverdure”...

Os Mirage III na capa de um livro da BD "Tanguy e Laverdure"

No que respeita à busca e destruição dos MiGs, essas aeronaves necessitavam de uma pista com um comprimento relativamente grande (2,5 km), asfaltada, coisa que na vizinha Guiné apenas existia na capital, tudo o resto era curto e em terra batida. A existirem, eles teriam que estar estacionados em Conacri. No entanto, aquando da Operação Mar Verde, a busca pelo aeroporto acabou por se revelar um fracasso. Nem rasto deles. Constatava-se assim “in loco” que, ao contrário do que tinha sido assegurado, na Guiné Conacri não havia MiGs.

Como explicar então o facto de terem sido vistos em Bissau?

No meu entender o caso tinha sido mal analisado pelos estrategas de serviço. Antes de tirarem tão importantes conclusões, deviam ter ido mais fundo, fazer mais perguntas: Eram MiGs os aviões que sobrevoaram Bissau? Quem os identificou como MiGs? A Guiné do Sekou Touré dispunha de aviões MiG-17?
Para perguntas simples, respostas simples: não... não dispunham!

Então a quem pertenciam então aqueles dois belos e gordos MiGs que, vindos do nada, tinham sobrevoado Bissau e desaparecido igualmente no meio do nada?
A guerra entre a Nigéria e o Biafra terminara havia apenas alguns dias. A Nigéria vencedora, mais de 1 milhão de mortos (não, não me enganei, 1.000.000). Nas forças que apoiavam a Nigéria, existiam cerca de 24 MiGs-17, de dono indefinido, pilotados por mercenários de vários países: Alemanha de Leste, Rússia, Reino Unido...

Duas hipóteses eram possíveis:
Como primeira hipótese, a Nigéria poderia estar a querer oferecer os seus serviços. Pouco provável naquele momento, já que o próprio Sekou Touré não se sentia muito seguro com os seus vizinhos.
Como segunda hipótese, a guerra terminada e pagamentos recebidos, os mercenários tinham de regressar aos seus locais de origem, o sobrevoo da nossa Guiné ficava nas suas rotas e porque em África os GPSs ainda não tinham sido inventados, uma maneira fácil de navegar era ao longo da costa. Combustível a escassear, a vontade de aterrar em Bissalanca deve ter sido enorme, só que Portugal tinha apoiado o Biafra, se aterrassem ficavam com os aviões apreendidos, era preferível continuar até Dakar onde, por um punhado de dólares, podiam reabastecer e seguir viagem, eventualmente para Marrocos ou Argélia, países com aviões semelhantes.

Acham estranho? Eu não acho, ainda que me possam acusar de especulação. Durante a guerra, os aviões para a Nigéria passavam em Dakar, os que se destinavam ao Biafra aterravam em Bissau. Até tínhamos na Base uma prova deste intercâmbio de aviões, um Gloster Meteor, que um piloto a caminho do Biafra e por razões desconhecidas resolveu abandonar na BA12. E quantos T-6 tinham passado por Bissalanca? 5? 10? 50? Não foi Portugal um dos principais apoiantes do Biafra?

Gloster Meteor abandonado na BA12 em Bissalanca

Não posso terminar esta história, sem voltar a falar dos MIRAGE e dar o braço a torcer. Sempre a dizer mal dos nossos estrategas e afinal eles sempre acabaram por dizer que nós, os Aéreos, precisávamos dos tais aviões. Aconteceu quando a Guiné ficou infestada de STRELAs. Só que aqui as coisas passaram-se de um modo um pouco diferente.

Para os MiGs, que acabaram por não aparecer, andámo-nos a preparar ao longo de inúmeros meses, sabíamos como enfrentá-los!! Para os STRELAs... nem sabíamos o que aquilo era... ninguém nos avisou!!! E foi assim que, de surpresa em surpresa, em poucos dias perdemos cinco aeronaves e quatro pilotos!!! Passado o choque inicial e identificado finalmente o tipo de arma que nos atacava, o nosso pedido era simples, só queríamos que substituíssem as quatro obsoletas metralhadoras do G-91 por 2 canhões de tipo semelhante ao do AL-III, bastava mudar os painéis laterais do armamento. E até havia um modelo de G-91, o R/3 (o nosso era modelo R/4), que tinha os ditos painéis.

Que não senhor, MIRAGEs é que era!!!
Imaginem só, nós a pedirmos um pãozito e eles a quererem dar-nos lagosta e caviar.
No final, ficámos sem comer nada.

OK, sem nada também não é verdade. Lá estou eu a ser torcido. No final lá conseguimos receber os tais G-91 R/3 com os painéis e os canhões em vez das metralhadoras...
Só que entretanto, já estávamos em 1976!!!

Fiat G.91 R/3 o modelo com canhões de 30 mm em vez das metralhadoras de 12,7 mm  do R/4    Foto: Anónimo

Hoje em dia tudo é diferente. Na área operacional a tecnologia actual permite que um avião à vertical de Bissau possa facilmente abater um outro que esteja a mais de 60 milhas. Nem precisa de o ver, o radar faz todo o trabalho.

No que refere a ataques ao solo, lá dos seus 7000 metros de altitude, um piloto consegue ver o “mau da fita” a fazer pipi atrás de uma árvore. Uma bomba largada da aeronave, irá cair exactamente aos seus pés, ainda o apanha de calças na mão. E é por causa de toda esta tecnologia que nenhum piloto vai para o ar sem conhecer as suas RoEs (Rules of Engagement - Regras de Empenhamento), saber exactamente o que pode e não pode fazer.

Um abraço,
António Martins de Matos
Ten Pilav da BA12


NOTA: As memórias do Gen. Martins de Matos foram publicadas no livro "Voando sobre um ninho de Strelas" disponível através da loja do Pássaro de Ferro




sábado, 28 de dezembro de 2013

CORREIO COM ANTENAS (M1350 - 409PM/2013)

O autor da "proeza" então Tenente Martins de Matos

No final de um destacamento de DO-27 em Nova Lamego (fins de 72 ou início de 73), e no momento de regressar a Bissau, o homem do SPM (Serviço Postal Militar) pergunta-me se posso largar um pequeno saco com correio, num destacamento situado no trajecto para a Base de Bissalanca. Não me lembro do nome... entre Bambadinca e Bafatá, sem pista, sem placa, sem nada... (eventualmente poderá ser Missirá, mas penso que deveria ser um outro destacamento).
Mas que tivesse atenção porque o último piloto a largar o saco tinha sido um grande nabo, tinha calculado mal e este tinha-se perdido no mato, para desespero do pessoal.

Claro que sim, estamos aqui para apoiar a tropa, saco embarcado, viagem sem incidentes até ao respectivo destacamento, contacto estabelecido com o pessoal. "Boas notícias, vão receber mais um saco de correio", saco de fora da janela, passagem pelo lado direito do objectivo, subida do DO-27 quase à vertical para perder velocidade, inversão rápida, queda de asa à esquerda, picada à FIAT G-91, apontar ao centro do destacamento, saco largado, cai em pleno objectivo, recuperação da picada ... a satisfação do dever cumprido!

E não é que os malcriados nem sequer vêm ao rádio, agradecer o esforço deste piloto que, na execução do circuito para a largada, quase tinha posto o cabo mecânico a "deitar a carga ao mar" ?!
Malandros... malcriados... mal-agradecidos…
Aterragem em Bissau pouco depois.

Chega-se o cabo mecânico, ainda suado e amarelo pelo que tinha sofrido, e diz-me:
- Meu Tenente, trazemos uns fios de antenas-rádio presos à cauda do avião!

Desculpem lá o incómodo, oxalá o correio tenha valido a pena.

Um abraço,
António Martins de Matos
Ten Pilav da BA12


NOTA: As memórias do Gen. Martins de Matos foram publicadas no livro "Voando sobre um ninho de Strelas" disponível através da loja do Pássaro de Ferro


sábado, 9 de novembro de 2013

FREIOS DE PICADA E OUTRAS CURIOSIDADES EM F-86 (M1261 - 337PM/2013)

Freios de Picada no F-86F

Freios aerodinâmicos do F-86       Foto: Arquivo BA5

Os apêndices aerodinâmicos colocados na fuselagem atrás das asas, quando abertos na posição correta, ficam descaídos. Só tinham duas posições: abertos ou fechados. 
A denominação dadas a essas superfícies era speed brakes.
A sua função e de acordo com a nomenclatura, era a de travar aerodinamicamente o avião. Era bem eficiente. Nunca consegui obter mais de 350 nós, em picada acentuada.
Era uma das minhas manobras preferidas, quando ao voar com o avião limpo (sem carga externa) e em altitude, reduzia o motor, apontava o nariz ao solo, freios fora e, dentro de pouco mais de 1 minuto, já estava a entrar no circuito de aterragem.

Jetstream (ventos fortes em altitude elevadas e latitudes médias)


Jetstream

Acima de 30.000 pés – 10.000 metros, já fui afetado diretamente pelo fenómeno.  Até poderia dizer a data!
Estava em Chateauroux de regresso da Alemanha (Oldenburg) com uma Esquadrilha de F-86F de volta a Monte Real.
Antes de entregar o Plano de Voo, como rotina, fomos à Meteorologia onde me chamaram a atenção sobre os ventos para a minha rota.
Verifiquei que as previsões, para cerca de metade no percurso, previam componente de ventos de frente (20/30º direita) na ordem de 230 nós. Nunca mais me esqueci deste valor. Perante aqueles dados alterei a viagem de regresso, dirigindo-me para Sul (Valência) e daí em 2º voo para Monte Real. 
Como é um fenómeno de latitudes médias soprando de Oeste para Leste, daquela vez, encontrei-me com “ele” e com a sua força...


Texto: Cap. (Ref) Fernando Moutinho

17

Quase todos os pilotos têm um avião em concreto ao qual se afeiçoam. A razão, só eles sabem muitas vezes e está relacionada com um (ou mais) episódio em particular, que os levam a adotar um avião, como sendo o "seu" avião.
No caso do Cap. Fernando Moutinho foi o F-86 com número de cauda 5317. 

A razão foi a coincidência de ter sido o avião em que fez o primeiro voo em F-86, em outubro de 1958, tendo sido depois também o último F-86 em que voou na Guiné, em outubro de 1964.

As cadernetas de voo do Cap. Moutinho com os registos correspondentes ao primeiro voo em F-86 e ao último na Guiné:




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