sábado, 18 de janeiro de 2014

A NOITE MAIS PERIGOSA DA MINHA GUERRA (M1386 - 21PM/2014)

Dornier DO-27 à descolagem em Guileje

Recordando a minha estadia de aviador por terras da Guiné, as missões preferidas eram as de DO-27, em especial as destinadas a apoiar os vários Batalhões, CAOPs, COPs e correlativos. Permitiam-me ver e conviver com o pessoal das “terras do fim do mundo”, ou como disse um escritor com laivos de Rambo e de memória baralhada, dos “cus de judas”.

Fazer embarcar os eventuais passageiros e carga, verificar se o peso a transportar estava dentro dos limites, verificar se os sacos do correio estavam na aeronave (a diferença entre ser bem ou mal recebido), descolagem logo pela fresquinha enquanto o calor não apertava, aterragem na sede do Batalhão, apresentação ao “Big Boss”: 
-Bom dia Sr. Major, apresenta-se o Tenente Piloto Aviador M.
E continuava: “... Conforme definido superiormente, o meu Major tem esta aeronave à sua disposição durante as próximas 4 horas ou 7 aterragens, o que se esgotar primeiro, para a utilizar na área do seu Batalhão da maneira que muito bem entender. A 8ª aterragem já será em Bissau, disponha como lhe aprouver...”

Dependendo da vontade, coragem ou preguiça do Major, umas vezes acabava por ficar as 4 horas sem nada fazer, ler um livrito à sombra de alguma árvore mais frondosa. Outras vezes passadas que ainda não eram duas horas, já tinha ido e vindo e tornado a ir e a vir... esgotado as aterragens e “ tenham um bom dia... ” rumo a Bissau. 
O limite das 7 aterragens tinha a ver com o acumular da fadiga do piloto versus a segurança de voo, já que havia pistas que nem ao mais pintado lembraria, alguns metros de largura, uns 200 de comprimento, algumas em curva, por vezes com vacas à mistura, o seu final com uma barreira de arame farpado ou mesmo a porta do quartel em cimento armado, “se não conseguir travar paciência, entro-lhes pela casa adentro, não me perguntem é pelo correio, que afino...”
E foi assim que conheci Bula, Binar, Biambe, Burutuma, Bigene, Bambadinca, Buba, Bedanda, Bissorã, Bissum, Binta… isto para só falar dos Bês.
Se a maior parte das vezes tudo corria pelo melhor, de vez em quando a coisa complicava-se, umas vezes por julgarem que o DO-27 era algo semelhante a uma Berliet, outras vezes por alguns Majores mais atrevidos não saberem contar de 1 a 7 (ou fingiam?) e em vez de reservarem a 7ª aterragem para o regresso à sua sede do Batalhão resolviam ainda ir aqui, ou ali, ou acolá; depois puxavam dos galões para que lhes fosse concedida uma aterragem extra: 
“ Ó nosso Tenente olhe lá, estou-lhe a dizer, vá-me levar de volta que aqui quem manda sou eu!!!”
E quando davam por ela já estavam no meio da placa da Base de Bissalanca, a deitar fumo pelas orelhas e a servirem de gozo aos Cabos da Força Aérea (FAP).

A partir Abril de 1973 e devido ao aumento da intensidade do conflito, deixei o DO-27 e passei a voar apenas o Fiat G.91. E se durante o resto da comissão e por inúmeras vezes lá fui passando por situações mais ou menos arriscadas, a noite de 23 de Junho foi certamente aquela em que o perigo me rondou mais de perto.
Recordemos, que havia já quase três meses que os mísseis Strela tinham aparecido nos céus da Guiné e até já tinha visto alguns a passarem bem perto. O pessoal do Guileje já tinha rompido aquele famoso cerco e executado a tal “retirada estratégica”, os de Guidage lá se tinham aguentado, o Exército já me tinha embrulhado num processo de averiguações por causa de umas Berliets estragadas lá para os lados de Binta, e o pessoal de Gadamael já se tinha espalhado e reagrupado. A calma a reaparecer aos poucos.

Nós, os da Força Aérea, é que andávamos um pouco baralhados da cabeça, porque das duas uma, ou a matemática tinha deixado de ser uma ciência exacta, ou então algo não batia certo.

Tudo isto porque apesar de no “Solar do Dez”, “Pelicano”, “Bento” e restantes cafés da má-língua constar que estávamos apavorados de medo e já não voávamos, no dia-a-dia continuávamos a executar missões atrás de missões, a um ritmo bem mais acelerado que anteriormente.
Uma coisa era certa, estávamos fartos de circular nas vizinhanças de alguns quartéis, a abrir clareiras na mata, a partir madeira e fazer barulho, fartos dos que diziam que já não os apoiávamos, (certamente deviam ser surdos, com tanto rebentamento ali mesmo nas suas barbas) e fartos dos que, sem nos saberem dar informações precisas, exigiam que bombardeássemos todas as matas à volta dos seus quartéis. Até que não podia ser. Cada bomba de 750 libras fazia um buraco no chão, onde podia caber à vontade um Unimog. A Guiné arriscava-se a ficar como um “queijo suíço”. Por outro lado estávamos absolutamente convencidos que as bases de fogo para os ataques a Guidaje, Guileje e Gadamael estavam situadas para lá da fronteira, já no território dos países vizinhos.

A razão era simples, se cada granada de morteiro pesava à volta de uns 15 quilos, cada ataque com 200 granadas (parece que era a medida standard) equivalia a utilizarem 3 toneladas de munições, demasiado peso para andar a ser transportado às costas e ainda por cima por trilhos pelo meio da floresta. Precisavam de algumas viaturas de carga e uma estrada por onde circular.
Por essas razões e apesar de não termos os passaportes em dia, o General Spínola até já nos tinha deixado ir cumprimentar os nossos amigos ao estrangeiro, a Kambera, Kumbamori e Kandiafara.

Os de Kambera não tinham sido muito calorosos a "receber-nos", ficaram chateados por lá termos ido logo a seguir ao almoço. O pessoal devia estar a dormir a sesta. Tinham lá alguns cubanos a passar férias que nos devem ter gritado alguns piropos do tipo “gilipollas de mierda... no me toques el coño”...

E até aconteceram umas cenas engraçadas e com uma certa ligação bíblica, um amigo meu ao querer afundar a barcaça que fazia a cambança do rio (que teria uns 90 metros de largura) errou a pontaria e acertou... no rio. Ainda assim não tinha havido nenhum problema. Durante alguns segundos e tal como Moisés quando quis atravessar o Mar Vermelho, a água desapareceu por completo, ficou só o fundo lodoso bem à vista. Depois, quando a água regressou tipo tsunami, foi a vez da barcaça desaparecer.

Em Kumbamori tínhamos participado numa excursão conjunta com o pessoal de terra. Sabem como é aquele ditado, meias só para as pernas, uns a trabalhar e outros a ficarem com a fama e o proveito.

Já os de Kandiafara tinham-nos "recebido" muito bem, com “fogo-de-artifício” e tudo. Ficaram surpreendidos já que não esperavam que viéssemos de tão longe só para os cumprimentar, grande alegria por nos verem, a foguetada parecia daquelas festas lá para o Minho, no fim até nos agradeceram, tínhamos lá deixado 36 buracos (ainda que um pouco grandes). Num futuro próximo bastava-lhes juntar um “Drive Range” e um Bar e tinham ali de imediato dois belos campos de golf. Até já estou a imaginar, o “KANDY COUNTRY CLUB (Members Only)”.

Voltando ao sábado 23 de Junho, era necessário fazer diminuir a tensão acumulada nos últimos tempos. O pessoal estava a ficar um pouco “cacimbado” (se fosse hoje dizíamos “com stress pós-traumático”) pelo que, muito em segredo foi planeada uma grande operação envolvendo todo o pessoal do Grupo Operacional. Pilotos, mecânicos da linha da frente, pessoal da manutenção, bombeiros e enfermeiras pára-quedistas, para o caso de uma eventual evacuação.

Como sabem, toda a operação que se preze tem que ter um nome de código que a identifique, ainda pensámos em “Granito” ou “Basalto”, logo nos disseram que operações com nomes de pedras nem pensar, estavam reservados para algum VIP, optámos por algo mais singelo: “Guerra é guerra e que ninguém se balde”. 
O sinal para o início da movimentação das tropas seria dado com a chegada, tão discreta quanto possível, de um avião Noratlas vindo de Lisboa. E ele acabou por aterrar em Bissau ao alvorecer do dia 23 de Junho, com a sua carga ultra-secreta, estacionando em local fora do habitual para não dar nas vistas, descarregando de imediato inúmeras caixas de madeira devidamente acondicionadas e tapadas para que ninguém visse com que tipo de munições iríamos atacar o inimigo. 
Logo pensaram os mais politizados que devia ser alguma nova arma secreta, provavelmente proibida pela Convenção de Genebra. Tinha de ser algo bem pior que o napalm, que, ao contrário do que constava nos cafés, até nem era proibido (só o passou a ser a partir de 1983). 
E que impropérios diria lá na sua rádio argelina aquele gajo de voz grossa quando soubesse da marosca?

Sem preocupações com todos estes pruridos, de imediato a máquina militar se pôs em movimento, ordens e contra-ordens à boa maneira portuguesa, os do QP a mandar, os Milicianos a vergar a mola. Durante a tarde instalaram-se os assadores típicos da FAP (meio bidon a trabalhar a carvão e a combustível de avião JP4), descascaram-se as batatas, prepararam-se o tinto e as saladas... Ao inicio da noite e após um very-light para sinalizar o local do objectivo, ouviu-se finalmente o sinal de chamamento para o ataque, “Horrendo, Fero, Ingente e Temeroso”.

Rapidamente manobrámos pelo fogo e pela manobra, tal como tínhamos aprendido nos compêndios militares, as sardinhas saltavam das caixas de madeira para os assadores, daí para o pão ou prato conforme o treino do combatente. Tiro e queda, limpar a arma e re-municiar de imediato, as “bazucas da Sagres” em disparos sucessivos, os invólucros a espalharem-se por todo o lado, as ordens a ecoarem: “Ninguém manda alto ao fogo que o inimigo tá bravo”. 
A noite correu pelo melhor, comeu-se, bebeu-se e conviveu-se como só se conseguia conviver nas noites africanas.

À volta dos assadores encontrámo-nos quase todos. O Coronel, os Majores (um deles do Exército, sortudo, fazia de oficial de ligação), Tenentes, Furriéis, Cabos e Soldados, que na Força Aérea sempre foi assim, “serviço é serviço e conhaque é conhaque”.
Ausências notadas foram a do nosso Comandante, Tenente-coronel Almeida Brito, o Maj. Mantovani Filipe (nosso oficial de ligação junto do QG), os Furriéis João Baltazar e António Ferreira e o Cabo Cóias, todos eles abatidos por mísseis Strela há menos de dois meses. 
Já me esquecia, faltou também o meu amigo Miguel Pessoa. Até tínhamos ficado um bocado chateados com o tipo, tinha deixado um avião todo partido lá no meio do mato e com medo de ser admoestado tinha passado uma noite escondido e fora de casa, quando afinal nós até lhe queríamos oferecer umas férias na Metrópole.
E mais, já com o bilhete no bolso e tendo conseguido algures uma garrafa de espumante, nem sequer a tinha bebido com os amigalhaços... avarento, semítico e mal agradecido! 
Mas afinal não era de estranhar que volta e meia se notasse uma ou outra "ausência" a estes eventos, já que na Força Aérea íamos todos à guerra, todos os dias, do Coronel ao Alferes, do Sargento ao Cabo, quer fossemos do QP ou Milicianos, homens ou mulheres.

Voltando ao combate da Bissalanca, uma verdade indiscutível é que depois de uma sardinhada é sempre necessário uma bebida forte, branca de preferência, sem a qual a digestão se torna lenta e difícil. Lá para o fim do repasto, o 1º Cabo Hélder, um dos meus mecânicos do Fiat G.91, chamou-me a um canto para que provasse a aguardente especial que a família lhe tinha mandado lá da terra. Apenas saído desta prova e já o nosso amigo e futuro bloguista Victor Barata, não querendo ficar mal visto perante o pessoal das aeronaves de caça (sempre as rivalidades), me apresentou um medronho de primeira. E depois foi o Miguel e o Mário, e o Correia, igualmente Cabos da Linha da Frente e a quem eu todos os dias confiava a vida ao entrar para um Fiat G.91 por eles devidamente abastecido, municiado e inspeccionado. Cada um deles a tentar demonstrar que os bagaços das suas terras eram bem melhores que os restantes.

Por volta da meia-noite, a batalha estava terminada, o inimigo completamente destroçado, era tempo de ir dormir, que no dia seguinte e apesar de ser domingo, a outra guerra continuava. 
Só que depois de ter passado quase um ano a dormir no “Biafra” da Base, a minha cama estava agora a uns bons dez quilómetros de distancia, tinha passado a viver em Bissau. As razões que me levaram a fazer a troca foram duas: o ter constatado que nos últimos seis meses só tinha jantado “francesinhas” e, já que vivia na base, estar permanentemente de serviço, com alvorada às 05:30 (... já que moras na base ficas de alerta!!)

O regresso a casa não tinha qualquer problema, já que tinha como meio de transporte a minha moto, uma bela, potente e roxa Yamaha 200 a 2 tempos, comprada com 16 notas da Metrópole, ali para os lados do que chamávamos a Av. da Liberdade (a que ia do Palácio do Governador ao cais).

Cabe aqui um outro parêntesis para informar que a primeira vez que andei de moto foi no dia que a fui buscar ao stand. Ao pretender saber como se metiam as mudanças o vendedor tão assustado que não ma queria vender. Só as D. Marias entregues ali mesmo e no momento o descansaram. “Ó homem deixe-se de merdices, abra lá a porta do stand e saia-me da frente”.
E assim entrei na confusão do trânsito de Bissau.

Voltando à história, ainda estive uma meia hora recostado naquelas grandes valas que existiam na Base para escoar a água das chuvas, a ver se conseguia contar as estrelas, que a maior parte delas não paravam de oscilar. A ideia era tentar alinhar os gyros e decidir se havia de me meter ao caminho ou não. O problema não era o balão, que nesse tempo não existia, nem as estrelas aos saltos, mas sim o estranho caso da estrada estar a ficar ondulada, tipo jibóia (e não me venham cá dizer que não há jibóias na Guiné, que eu até as vi). Após profunda meditação e analisando os prós e os contras, resolvi meter-me ao caminho.

Lembro-me apenas de sair à porta de armas e de algum tempo mais tarde ter passado junto a um ou dois quartéis que existiam à beira da estrada, poucas referências para o trajecto de cerca de dez quilómetros. Enquanto circulava de gás à tábua, o meu pensamento não parava de me alertar para que ao chegar ao destino tinha que travar, travar... travar. 
E assim aconteceu, para além dos mosquitos, moscardos e correlativos a esborracharem-se com fragor no capacete, consegui fazer o percurso sem bater em nada nem em ninguém (ou não fosse eu um piloto de caça).

A terceira referência da viagem foi a porta do meu apartamento onde, a travar, a travar, acabei por vir a bater já muito devagarinho, mas ainda assim com algum estrondo. E tão contente fiquei de ter chegado (e parado) que nem sequer me lembrei que, como passo seguinte, tinha de pôr os pés no chão, trambolhão da moto abaixo, a 0km/h.

Na manhã seguinte fui voar com um braço todo entrapado e umas pastilhas para as dores, tomadas numa auto-medicação bem à revelia do médico, que um dos ombros estava em mau estado.
Felizmente que foi um dia muito calmo, acabei por só fazer uma missão, 40 minutos de voo, 2 bombas de 750 libras algures na Guiné, mais 2 buracos dos grandes, os que sabiam que os continuávamos a apoiar devem-nas ter ouvido... os outros certamente que não.

Hoje, passados 40 anos o vício das motos ficou, trambolhões só dei mais um, também a 0 km/h.
E ficou a saudade dos bons momentos passados na Base da Bissalanca.

Um Abraço,
António Martins de Matos
Ten PilAv da BA12


NOTA: As memórias do Gen. Martins de Matos foram publicadas no livro "Voando sobre um ninho de Strelas" disponível através da loja do Pássaro de Ferro


1 Comentários:

João Nobre disse...
Este comentário foi removido pelo autor.

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