sábado, 4 de janeiro de 2014

MIGs, MIRAGEs E MIRAGENS (M1361 - 01PM/2014)

Quando os amigos que passaram pela Guiné se juntam à volta de uma mesa, logo as histórias e recordações brotam de imediato. A emboscada, a mina, os periquitos, as bajudas, as noites de confraternização, a G-3, a Kalash... e por aí fora. E volta não volta, vem à baila o tema dos MiGs.
Que tinham sido vistos aqui e acolá, certamente pilotados por cubanos, por pilotos da Guiné Conacri ou mesmo do PAIGC, treinados na Rússia, na Líbia ou em Paio Pires, blá, blá, blá...

Falou-se muito de hipotéticos voos sobre o nosso território e até houve quem os tivesse visto a sobrevoar Bissau. A nós, pilotos, o assunto não nos podia deixar indiferentes. Não podíamos ser apanhados de surpresa, tínhamos que estudar as características do inimigo, ver onde eventualmente poderíamos ser mais fortes e colmatar os pontos mais fracos. Lá concluímos que, a existirem, os aviões adversários deveriam ser uma das inúmeras variantes do MiG-17, de fabrico russo, de características semelhantes aos nossos F-86 e utilizados por praticamente todos os países sob influência da então URSS.

MiG-17 com cores do Vietname do Norte    Foto: Bubba73/Wikipedia
Na Base de Monte Real já tínhamos ensaiado combates ar-ar entre o F-86 (simulando o MiG) e o G-91, e rapidamente chegámos à conclusão que, a baixa altitude, um F-86 (de melhor manobrabilidade) facilmente abateria um G.91. A única maneira do G.91 sobreviver era furtar-se ao confronto. Verificámos igualmente que os MiGs-17 ainda estavam a ser utilizados no Vietname e que tinham obtido algumas vitórias sobre caças americanos F-105, aeronaves muito mais modernas e sofisticadas. 

F-86 (esq) e G.91 (dir): um duelo que perdurou mesmo depois do fim da guerra   Foto: Arquivo BA5

O assunto era de tal modo sério, que acabou por ser levado às instâncias superiores.

Como solução, a FAP propunha a compra imediata de novos aviões, que substituíssem os G.91, e a escolha recaía numa aeronave de fabrico francês, os Mirage III. Não por serem superiores aos aviões americanos da altura, mas porque a França era um dos poucos países que ainda nos vendia armamento (no caso dos AL-III até já não se comprava à unidade, era mais ao quilo). Cabe aqui um parêntesis para esclarecer que uma “compra imediata de aviões” levaria no mínimo uns dois a três anos a ser concretizada. Como estávamos em 1970, teríamos MIRAGEs lá para o início de 1973. No meio deste desconforto de nos podermos encontrar cara a cara com um MiG-17, o que nos tranquilizava era não haver qualquer confirmação fidedigna de que o país vizinho dispusesse de aviões daquele tipo.

Mirage IIIE      Foto: US Defense Images

Cá pela minha parte várias vezes fui incumbido de ir voar junto à fronteira, a ver se via algum. Nunca os enxerguei. E deixem-me dizer-vos “ainda bem”, porque tendo o péssimo hábito de fazer perguntas, uma vez calhei a perguntar aos meus superiores, o que deveria fazer caso os avistasse: abatê-los, assustá-los, pirar-me, assobiar para o lado, eventualmente cumprimentá-los ? Resposta do meu superior, “depois logo se vê”, como se tal fosse possível. Num minuto tudo estaria iniciado e concluído. Se, por um lado, nunca tinha encontrado nenhum MiG, nem por isso as minhas buscas tinham sido sempre em vão. Uma das vezes encontrei um avião grande à vertical de Bissorã, um DC-7, seguia de sul para norte. Lá fiz a fatídica pergunta aos meus superiores “que fazer?”. Quando a resposta chegou, já o tipo tinha deixado a Guiné e entrado pelo Senegal adentro.

Era assim a guerra da altura. Sem radar que nos indicasse os intrusos, qualquer avião, "avioneta", helicóptero ou similar podia atravessar o espaço aéreo da Guiné, sem que dele tivéssemos conhecimento. Só um olhar ocasional poderia dar algum alerta… 
E com a época seca então era um descanso, ninguém via nada, à excepção do pessoal de Aldeia Formosa. Esses estavam sempre a ver OVNIs. Ao princípio ainda os tivemos em conta, mas depois foi como a história do “Pedro e o Lobo”, fartos de lá ir e nada encontrar. 
Deixámos de os ouvir.

Em conclusão, 500 missões pelos céus da Guiné, para cima e para baixo, para a esquerda e para a direita e nunca vi nenhum MiG!!!

Passados todos estes anos e ao recordar o tema, penso que a história da ameaça dos MiGs foi demasiado empolada, erro iniciado aquando do caso do sobrevoo de Bissau, mal interpretado pelos analistas da altura. Senão vejamos:

Para situar o assunto, diz o Carlos Matos Gomes e Aniceto Afonso que o sobrevoo a Bissau dos MiG-17 se deu a 13 Fevereiro 1970, e que estes sobrevoaram igualmente a Base de Bissalanca. De acordo com os nossos estrategas, o significado da aparição deste avião era claro: “A FAP estava em inferioridade, pelo que foi decidido comprar em França uma bateria de mísseis Crotale e que um dos objectivos da missão Mar Verde fosse a destruição dos MiG-17”.

Dito e feito.

Interessante o raciocínio do Estado Maior de então: a FAP em inferioridade, em vez de se ir comprar o tal novo avião que a FAP já tinha pedido, que pudesse enfrentar os MiG, e/ou um radar que cobrisse o espaço aéreo da Guiné, resolverem antes comprar um brinquedo para o Exército. Até porque, sem o dito radar, a identificação dos alvos continuava a ter que ser feita “a olho”. A ameaça com que os pilotos se debatiam, em vez de diminuir, aumentava... Não só tínhamos que nos haver com as antiaéreas do inimigo, como ainda passávamos a estar sujeitos a uma Crotalada amiga. O nosso slogan de guerra estava cada vez mais certo: “Deus nos livre da antiaérea amiga, que da inimiga livramo-nos nós”!... 
O meu amigo Pereira da Costa, artilheiro convicto, que me perdoe a “boca”.

Os Crotale foram efectivamente comprados, mas só chegaram a Portugal já depois do fim da guerra.

Quanto aos MIRAGE, com um raio de acção capaz de facilmente atingir Conacri, ficámos a vê-los tipo miragem, lindos que eles eram! Já me estava a ver no meio das aventuras do “Michel Tanguy e do Laverdure”...

Os Mirage III na capa de um livro da BD "Tanguy e Laverdure"

No que respeita à busca e destruição dos MiGs, essas aeronaves necessitavam de uma pista com um comprimento relativamente grande (2,5 km), asfaltada, coisa que na vizinha Guiné apenas existia na capital, tudo o resto era curto e em terra batida. A existirem, eles teriam que estar estacionados em Conacri. No entanto, aquando da Operação Mar Verde, a busca pelo aeroporto acabou por se revelar um fracasso. Nem rasto deles. Constatava-se assim “in loco” que, ao contrário do que tinha sido assegurado, na Guiné Conacri não havia MiGs.

Como explicar então o facto de terem sido vistos em Bissau?

No meu entender o caso tinha sido mal analisado pelos estrategas de serviço. Antes de tirarem tão importantes conclusões, deviam ter ido mais fundo, fazer mais perguntas: Eram MiGs os aviões que sobrevoaram Bissau? Quem os identificou como MiGs? A Guiné do Sekou Touré dispunha de aviões MiG-17?
Para perguntas simples, respostas simples: não... não dispunham!

Então a quem pertenciam então aqueles dois belos e gordos MiGs que, vindos do nada, tinham sobrevoado Bissau e desaparecido igualmente no meio do nada?
A guerra entre a Nigéria e o Biafra terminara havia apenas alguns dias. A Nigéria vencedora, mais de 1 milhão de mortos (não, não me enganei, 1.000.000). Nas forças que apoiavam a Nigéria, existiam cerca de 24 MiGs-17, de dono indefinido, pilotados por mercenários de vários países: Alemanha de Leste, Rússia, Reino Unido...

Duas hipóteses eram possíveis:
Como primeira hipótese, a Nigéria poderia estar a querer oferecer os seus serviços. Pouco provável naquele momento, já que o próprio Sekou Touré não se sentia muito seguro com os seus vizinhos.
Como segunda hipótese, a guerra terminada e pagamentos recebidos, os mercenários tinham de regressar aos seus locais de origem, o sobrevoo da nossa Guiné ficava nas suas rotas e porque em África os GPSs ainda não tinham sido inventados, uma maneira fácil de navegar era ao longo da costa. Combustível a escassear, a vontade de aterrar em Bissalanca deve ter sido enorme, só que Portugal tinha apoiado o Biafra, se aterrassem ficavam com os aviões apreendidos, era preferível continuar até Dakar onde, por um punhado de dólares, podiam reabastecer e seguir viagem, eventualmente para Marrocos ou Argélia, países com aviões semelhantes.

Acham estranho? Eu não acho, ainda que me possam acusar de especulação. Durante a guerra, os aviões para a Nigéria passavam em Dakar, os que se destinavam ao Biafra aterravam em Bissau. Até tínhamos na Base uma prova deste intercâmbio de aviões, um Gloster Meteor, que um piloto a caminho do Biafra e por razões desconhecidas resolveu abandonar na BA12. E quantos T-6 tinham passado por Bissalanca? 5? 10? 50? Não foi Portugal um dos principais apoiantes do Biafra?

Gloster Meteor abandonado na BA12 em Bissalanca

Não posso terminar esta história, sem voltar a falar dos MIRAGE e dar o braço a torcer. Sempre a dizer mal dos nossos estrategas e afinal eles sempre acabaram por dizer que nós, os Aéreos, precisávamos dos tais aviões. Aconteceu quando a Guiné ficou infestada de STRELAs. Só que aqui as coisas passaram-se de um modo um pouco diferente.

Para os MiGs, que acabaram por não aparecer, andámo-nos a preparar ao longo de inúmeros meses, sabíamos como enfrentá-los!! Para os STRELAs... nem sabíamos o que aquilo era... ninguém nos avisou!!! E foi assim que, de surpresa em surpresa, em poucos dias perdemos cinco aeronaves e quatro pilotos!!! Passado o choque inicial e identificado finalmente o tipo de arma que nos atacava, o nosso pedido era simples, só queríamos que substituíssem as quatro obsoletas metralhadoras do G-91 por 2 canhões de tipo semelhante ao do AL-III, bastava mudar os painéis laterais do armamento. E até havia um modelo de G-91, o R/3 (o nosso era modelo R/4), que tinha os ditos painéis.

Que não senhor, MIRAGEs é que era!!!
Imaginem só, nós a pedirmos um pãozito e eles a quererem dar-nos lagosta e caviar.
No final, ficámos sem comer nada.

OK, sem nada também não é verdade. Lá estou eu a ser torcido. No final lá conseguimos receber os tais G-91 R/3 com os painéis e os canhões em vez das metralhadoras...
Só que entretanto, já estávamos em 1976!!!

Fiat G.91 R/3 o modelo com canhões de 30 mm em vez das metralhadoras de 12,7 mm  do R/4    Foto: Anónimo

Hoje em dia tudo é diferente. Na área operacional a tecnologia actual permite que um avião à vertical de Bissau possa facilmente abater um outro que esteja a mais de 60 milhas. Nem precisa de o ver, o radar faz todo o trabalho.

No que refere a ataques ao solo, lá dos seus 7000 metros de altitude, um piloto consegue ver o “mau da fita” a fazer pipi atrás de uma árvore. Uma bomba largada da aeronave, irá cair exactamente aos seus pés, ainda o apanha de calças na mão. E é por causa de toda esta tecnologia que nenhum piloto vai para o ar sem conhecer as suas RoEs (Rules of Engagement - Regras de Empenhamento), saber exactamente o que pode e não pode fazer.

Um abraço,
António Martins de Matos
Ten Pilav da BA12


NOTA: As memórias do Gen. Martins de Matos foram publicadas no livro "Voando sobre um ninho de Strelas" disponível através da loja do Pássaro de Ferro




5 Comentários:

Merridale and Ward disse...

Publiquei:

http://historiamaximus.blogspot.pt/2014/01/migs-mirages-e-miragens.html

Contacto: historiamaximus@hotmail.com

Cumpts,
João José Horta Nobre

Miguel disse...

Obrigado pelo seu testemunho!
Muito interessante, eu sempre quis saber um pouco mais sobre estes Mig 17 durante a guerra colonial.
Se não me engano eles queriam comprar Mirage F1 (mais sofisticado do que o Mirage III), isso é verdade?

Cumprimentos.

Miguel.

Paulo Mata disse...

Miguel, pode ler outro artigo que complementa este e responde as suas perguntas aqui no Pássaro de Ferro em: http://www.passarodeferro-operations.blogspot.pt/2014/01/a-historia-secreta-dos-mirage.html

Cumprimentos

Miguel disse...

Ok muito obrigado!

Anónimo disse...

http://olx.pt/anuncio/banda-desenhada-operao-mar-verde-antnio-vassalo-de-miranda-IDykUrF.html#2b7ea5c60f

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