sábado, 11 de janeiro de 2014

FUZILEIRO POR UM DIA (M1374 - 11PM/2014)

Dornier Do-27

A minha missão era simples, consistia em voar até ao quartel do Cacheu e aí fazer embarcar no DO-27 um Oficial dos Fuzileiros que ia comandar (de cima) uma operação.

E assim foi, depois de perguntar ao homem do Serviço Postal Militar (SPM) se havia alguma carga de oportunidade para aquele quartel e metido o saco do correio a bordo, lá segui rumo à pista do Cacheu. Viagem sem história, a pista nem era mázita, lá me apareceu o Fuzo para comandar a operação, o restante pessoal já tinha saído nos botes (acho que os fuzileiros lhes chamam outra coisa, para mim são botes) rio acima em direcção à Caboiana.

Cabe aqui um parêntesis para dizer como as “coisas da guerra” funcionavam: O oficial comandante da operação, normalmente Major, Capitão Tenente, nestes casos de marinheiros, levava todo o seu equipamento, prancheta, punaises, mapas plastificados, marcadores, correctores, lápis e borracha, enfim, todo o material necessário e suficiente para que, em cima dos ditos mapas, pudesse ir desenhando a evolução da operação.
O rádio, os auscultadores e os sacos de enjoo eram fornecidos pela FAP.

A missão do piloto consistia em voar até à área das operações e a partir daí, ir seguindo as direcções que o douto passageiro indicava, mais para a esquerda, mais para a direita, mais alto, mais baixo, tão baixo também NÃÃOOO, que me assustei... e por aí fora. Parecendo fácil, não tinha nada de difícil.
E o passageiro lá ia comunicando com a tropa no chão, pedindo informações e dando ordens e indicações, umas vezes em perfeita harmonia, outras vezes em completo desentendimento.

Com o decorrer das operações o aviador ia-se apercebendo de algumas incongruências, que volta não volta iam aparecendo. Por vezes o passageiro perdia-se. O sinal era quando começava a dar voltas ao mapa como se fosse um volante. Por vezes a tropa nem sempre estava onde dizia que estava. E como disse num outro texto, se havia “comandantes” que davam de imediato pela “falcatrua”, havia outros que eram completamente enganados e nem davam por tal. 
Essas incongruências não incomodavam o piloto. Se o homem estava ali para ser enganado, o problema era dele, só que, se por qualquer motivo, era preciso chamar os aviões de alerta para darem um apoio de fogo imediato, nesse momento a coisa complicava-se. O não ter a certeza do local por onde a tropa estaria estacionada era um pesadelo dos grandes, dos muito grandes. 
A partir desse momento o “passageiro” calava-se e era o piloto do DO-27 que tomava o controlo da guerra, esperando a chegada dos Fiats, encaminhando-os para o local, dando-lhes a perceber onde estavam “os bons e os maus”. A maneira fácil de proteger os nossos, era voar em círculos apertados à sua (deles) vertical. Não gostavam os de baixo, mas era a única maneira de não levarem com uma roquetada. À segunda volta, o passageiro começava a gastar os sacos de enjoo. Às vezes não chegavam, seguia-se o plástico que continha os dados da guerra e terminava com o próprio mapa.

Voltando à história.

Descolados da pista do Cacheu, lá fomos nós em direcção à Caboiana. A missão dos Fuzos consistia em patrulhar alguns afluentes da margem esquerda do rio, dois botes aqui, outros dois acolá. “Operações normais”, a coisa a correr bem. 
Eis senão quando desataram todos aos tiros, granel, durante alguns minutos ninguém se entendeu. Nós cá de cima sem saber quem tinha emboscado quem. 
Quando a coisa serenou, foi hora de contabilizar os estragos. Os Fuzos tinham um ferido. 
Logo o Comandante da Operação deu por terminada a progressão, regresso imediato dos botes ao Cacheu, e, acto seguinte, pediu-me se não me importava de aguardar que o ferido chegasse ao quartel afim de ser transportado de imediato para Bissau. “Claro que não, estou aqui para ajudar”, cinco minutos depois já estávamos aterrados no quartel do Cacheu à espera do ferido.

Foi aqui que a coisa se complicou.

Como a tropa para retirar da Caboiana ainda levava algum tempo (tinham que recolher algum pessoal que andava por lá espalhado), alguém sugeriu que saísse um bote do quartel do Cacheu afim de ir buscar o ferido. Meu dito meu feito. Até que outro alguém, voltando-se para mim, perguntou: “Ó Tenente, quer vir connosco no bote?” E eu, periquito da merda, devia era estar calado, logo disse: “Claro que quero”.
Saiu-me, peço desculpa, era jovem e não pensava...

E pronto, um bote, três Fuzos e um piloto, três G-3 e a minha Walter PPK calibre .22, lá fomos rio Cacheu acima em direcção à Caboiana.
Vejam só, podia ser em direcção ao Pelicano, ou à casa do Mário Soares em Pirada, ou ao meu amigo libanês de Bafatá de quem não me lembro o nome, mas não… em direcção à Caboiana!!!!!

Ao princípio e enquanto subíamos o rio a coisa até correu bem, era como andar de barco ali pela baía de Cascais. Claro que os Fuzos não se podiam comparar às Tias da Linha, mas o motor era potente, já me estava a imaginar no ski...
O pior foi quando entrámos pelo afluente do rio Cacheu, riozito de merda, nem 20 metros de largura teria, os Fuzos a meterem bala na câmara, velocidade reduzida, o menor ruído possível, encostados ora a uma margem ora à outra. Não tinha a ideia que o tarrafo fosse tão alto, lá de cima a coisa parecia bem diferente. No mínimo eram dois metros de arbustos, mesmo ali junto à água.
E o meu pensamento: “Se está por aqui algum turra escondido nem precisa de me dar um tiro, agarra-me à mão pelos colarinhos e pronto... estou feito. E como explicar um piloto averbado num bote de fuzileiros… se calhar ainda levo uma porrada a título póstumo.”

Eis que de repente e numa das curvas do riozito, descobrimos um outro bote onde vinha o ferido. Um pequeno alívio, a servir de consolação, pelo menos já não tínhamos que ir mais em frente. Xiça...
Chegou o ferido, sorridente, mas com um sorriso estranho. Um tiro tinha-lhe furado a bochecha e partido um dente, a bala saiu sem mais estragos. O sacana devia ter a boca aberta, houvesse euromilhões na altura e saía-lhe de certeza.
O regresso foi no mesmo ritmo. Silenciosos até chegar ao rio Cacheu e depois gás à tábua que se faz tarde.

E pronto, regressei ao meu ambiente, o admirável ar. Lá levei para Bissau o Fuzo da bochecha furada e dente partido. Foi uma experiência cinco estrelas, mas para fuzileiro chegou, que isto de andar entre o tarrafo tem que se lhe diga.

Um Abraço,
António Martins de Matos
Ten PilAv da BA12


NOTA: As memórias do Gen. Martins de Matos foram publicadas no livro "Voando sobre um ninho de Strelas" disponível através da loja do Pássaro de Ferro

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