sábado, 12 de outubro de 2013

CONSTIPAÇÃO A 12.000 METROS (M1207 - 291PM/2013)

North American F-86F Sabre      Foto: AHFA

Algumas condições um pouco especiais levaram a uma situação muito difícil. Antes de relatar o caso em concreto, gostaria de chamar a atenção para as complicações que podem resultar para o sistema auditivo do pessoal navegante, a partir duma simples constipação.
O sistema auditivo está ligado à garganta pela “Trompa de Eustáquio” ou seja, um canal que permite o equilíbrio da pressão atmosférica, dentro do ouvido. Sempre que há variação de pressão atmosférica, sentimos, em especial a descer, um ensurdecimento ligeiro, que desaparece utilizando a chamada “Manobra de Valsalva”.
Quem nunca experimentou, num automóvel, numa descida acentuada, essa leve pressão e ligeira surdez nos ouvidos? Para a resolver basta, normalmente, engolir em seco.
Num avião este fenómeno acentua-se como se compreenderá. A Trompa de Eustáquio tem uma forma que facilita a saída do ar para restabelecer a pressão atmosférica no interior do ouvido, mas é mais difícil a entrada para restabelecer esse mesmo equilíbrio se, a Trompa estiver afetada por infeção na garganta, como por exemplo, uma simples constipação.
Nos aviões comerciais a pressão na cabina é normalmente equivalente a 2000 a 3000 metros, de onde se compreende que o problema é menos grave mas, nos aviões militares do meu tempo, naqueles que tinham sistemas de pressurização, a altitudes de cruzeiro elevadas (10.000 a 13.000 metros) a altitude de cabine rondaria os 7000 metros, com variações, é claro. Isto em voos normais. Mas o que pode suceder com falha na pressurização? Muito simplesmente, sem problemas se a garganta estiver normal mas, complicadíssimo, em caso de afeção.

Eis o que se passou comigo.

Numa esquadrilha de quatro F-86, saímos de Monte Real para uma viagem de treino para o estrangeiro. Até aí tudo bem. 
Mas, aquando do regresso, já em Chateauroux, senti-me constipado e fomos – eu e o Comandante da Esquadrilha – ao médico para as devidas medidas. Analisou-me e deu-me umas gotas para utilizar. Fiquei com medo de regressar, porque sabia que seria complicado. Mas, perante a não proibição do médico, teria que realizar o regresso. Descolámos com rumo a Monte Real. 
A subir, como expliquei antes, nada de especial se passou, mas de acordo com um ditado popular – um mal nunca vem só - tive uma avaria no alternador, que como o nome indica, me retirou a energia alterna.
Consequências diretas: fiquei sem radiocomunicações (comunicávamos por sinais), fiquei sem controlo automático de aquecimento e... sem pressurização! 
Sem pressurização e a voar 12.000 metros. Fiquei preocupadíssimo. O tempo estava bastante nublado e até tempestuoso. Voávamos dentro de nuvens. Já perto de Monte Real iniciámos a descida. Nos primeiros metros ainda restabeleci o equilíbrio auditivo, mas depois as coisas complicaram-se. Comecei a ter perturbações e deformações de visão. Como voávamos em formação cerrada, dentro de nuvens, teria de manter a posição a todo o custo, porque ainda tinha outro avião a meu lado. Ao aproximarmo-nos dos 4000 metros (já não é necessário oxigénio), em desespero, arranco a máscara e pressionando as narinas, faço a dita Manobra de Valsalva, que resultou, com os ouvidos a restabelecerem a pressão. 
Foi um alívio extraordinário mas momentâneo, pois continuávamos a descer. Não mais consegui restabelecer a pressão no canal auditivo. Mesmo com mau tempo, consegui aterrar, mas vinha num estado lastimoso. No estacionamento, após parar o avião, ainda consegui descer as escadas, mas no solo, encostei-me ao avião e desmaiei. Por pouco tempo, mas fui-me "abaixo das canetas". Estava em estado de choque.
Enfermaria, médico e outra Valsalva na enfermaria, que atenuou um pouco a minha situação. De seguida Hospital da Estrela, seguindo-se mais um mês, até recuperar a normalidade.
Foi um dos meus piores pesadelos. Volto a repetir: só foi difícil, por estar constipado, porque como conto noutro local, já voei durante algum tempo a 14.000 metros sem pressurização, com um rombo na cabine e desci sem problemas, uma vez que estava bem de saúde. 
Uma boa condição da garganta/ouvidos para o pessoal navegante é essencial.

Agora para aligeirar, vou referir uma panaceia usada pelo pessoal em Angola, para fazer frente ou atenuar aquele problema. 
Durante o período que estive em Angola a voar no Noratlas, por vezes saíamos por vários dias. Como não éramos imunes às afeções na garganta, sucedia que ligeiras anomalias nos complicavam a vida. Por ter lido algures, comecei a utilizar uma técnica “caseira” – aspirava uma a duas gotas de limão por cada narina até chegarem à garganta e aí poderem atuar como desifetante. 
Não me curavam plenamente, mas atenuavam os efeitos da afeção. 
Esta panaceia começou a ser adaptada pelos outros pilotos e ainda hoje a utilizo com algum sucesso.Mas no geral, posso gabar-me de um historial quanto a saúde quase irrelevante, durante a minha carreira como piloto. Felizmente.

Texto: Cap. (Ref) Fernando Moutinho

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