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SS-20 Saber, a “Ameaça Vermelha”
Em 1976-1977 surgiram fotos de reconhecimento de satélite da NATO a revelar pequenos contingentes de veículos transportadores-lançadores em Gomel e Vitebsk, na Bielorrússia, e na fronteira com a China. A CIA já tinha avisado, desde 1973, e com algum detalhe, que os Russos estavam a desenvolver um poderoso tipo de míssil balístico de médio/intermédio alcance. Agora estava confirmado. Mas, mesmo assim, as capacidades desta nova arma, designada SS-20 Saber pela NATO (e RDS-10 Pioneer pelos Soviéticos) fizeram disparar os alarmes na Europa Ocidental. Pior que isso, esta arma ameaçava destruir o delicado equilíbrio nuclear entre a NATO e o Pacto de Varsóvia. Porquê?
A forma mais contundente de explicar as capacidades do SS-20 é por compará-lo com os seus antecessores SS-4 Sandal e SS-5 Skean;
Mobilidade – Ao contrário do Sandal e Skean, que eram lançados de silos fixos, o Saber podia ser lançado e disparado de um impressionante camião MAZ-547A 12x12, o que diminuía muito a vulnerabilidade face a um ataque preliminar. (Só uma nota em relação aos Sandal/Skean; no post anterior vemos estes mísseis a serem transportados nos desfiles da Praça Vermelha mas essa não é uma capacidade operacional. Os tractores e atrelados servem apenas para transportar os mísseis para manutenção e posicionamento) As baterias de SS-20 estavam equipadas com todo o equipamento necessário para se dispersarem rapidamente e disparar autonomamente e sem demora (e com recargas). Claro que todo o processo de introdução de alvos e perfis de navegação teria ser actualizado no computador e os (vários) locais de lançamento previamente designados e sincronizados.
Uma das primeiras ilustrações do DoD a surgir em fontes públicas. Toda a bateria era constituída por veículos todo-o-terreno de grande mobilidade; além do transportador-lançador, os veículos com recargas e o posto de comando partilhavam o mesmo chassis MAZ. Cada bateria era também acompanhada por um pelotão de Spetsnaz fortemente armado para protecção e reconhecimento dos locais de lançamento.
Alcance – O Saber aumentou o alcance para mais de 5000km, um enorme melhoramento face ao Sandal (2000km) e Skean (3700km). Os mais atentos saberão que o SS-4 media 22m de comprimento, largura de 1,6m e pesava cerca de 40 toneladas enquanto o SS-5 acusava quase o mesmo comprimento (24m) mas era muito mais largo (2,4m) o que aumentava o peso para o dobro. Mas como é que o SS-20, com 16m de comprimento, 1,8m de largura e umas frugais 37 toneladas, conseguia alcançar 5000km? Bem, o Saber representou um enorme avanço geracional na tecnologia de mísseis Soviética, seja em termos de materiais, miniaturização de componentes e desenvolvimento de novas tecnologias. O mérito de muitos desses avanços deveu-se ao brilhante engenheiro Aleksandr Nadiradze, uma personagem mítica das Forças Estratégicas Soviéticas. Um dos seus projectos mais ambiciosos ficou conhecido no Ocidente como SS-16 Sinner, mas muitas destas tecnologias ainda eram demasiado imaturas para serviço operacional – aos quais se juntaram também alguns problemas metalúrgicos e interferências políticas para afundar o projecto. O SS-20 beneficiou de muitos dos predicados desse desenho e simplificou outros, particularmente na propulsão. Um dos grandes saltos na capacidade destes mísseis foi o uso de combustível sólido e dois estágios independentes (três no Sinner). Visto de relance poderia ser fácil concluir que estágios com motores-foguete independentes seriam mais pesados (e mais complexos) que os motores-foguetes singulares dos Sandal/Skean. É verdade, em parte. Mas a (enorme) vantagem de um míssil multi-estágios é que cada estágio, depois de consumido todo o combustível, é ejectado, o que reduz muito o “peso-morto” do conjunto, não faz oscilar tanto o CG e diminui o arrasto aerodinâmico. Além disso, os combustíveis sólidos são, geralmente, mais densos e potentes e ocupam menos volume do que os combinados líquidos.
Para a NATO, tentar encontrar meios para detectar e destruir os lançadores de SS-20 tornou-se uma obsessão. Com centenas de locais de lançamento disponíveis, desde pequenas clareiras na Bielorrússia até parques de estacionamento na RDA, os Saber seriam tão (ou mais) difíceis de encontrar como os famosos Scud Iraquianos em 1991.
Tempo de reacção – Este ponto está directamente relacionado com o anterior – o uso de combustível sólido. Enquanto que o Sandal e Skean necessitavam de ser reabastecidos (um processo moroso, delicado e perigoso), mísseis como o Saber são entregues lacrados e prontos para usar, com uma “validade de armazenamento” de vários anos. E porque não pode um míssil de combustível líquido ficar abastecido e em alerta o mesmo tempo? Porque estes combustíveis são mais instáveis e sujeitos a maior degradação – além de, em alguns casos, devido á sua natureza extremamente corrosiva e ácida, literalmente “comerem” a estrutura interna e os vedantes. Assim, depois de um período de alerta de uns 30 dias o combustível tem de ser retirado (um processo ainda mais moroso, delicado e igualmente perigoso…). Foi também o uso do combustível sólido que facilitou a grande mobilidade e fácil deslocação dos mísseis para fora do “conforto” dos silos.
Ogiva – E ainda não tocamos no ponto mais fulcral e mortífero do SS-20; a ogiva. Pior, “as” ogivas. A grande insuficiência da dupla Sandal e Skean era a fraca precisão da ogiva unitária, o que os definia, firmemente, como armas de retaliação (countervalue). O Saber surgiu inicialmente também com uma ogiva singular de 1MT mas foi rapidamente substituída por um “bus” com 3 MIRV de 150KT e uma precisão de 400 metros. Isto não era uma mera evolução, melhoramento ou aperfeiçoamento técnico – foi um choque tecnológico e táctico que transformou, de um dia para o outro, o cenário nuclear na Europa. Uma das capacidades da ogiva tripla seria atacar alvos separados de forma independente – dentro de um raio de 100km, aproximadamente, dependendo do perfil – com a doutrina Soviética a preferir ataques concentrados a alvos de grande valor militar (counterforce), como bases de mísseis, portos de mar em Inglaterra (para dificultar a chegada de reforços dos EUA), bases aéreas estratégicas, depósitos de armas nucleares e concentrações blindadas. Em 1983 os Soviéticos já dispunham de 315 sistemas SS-20 no activo e 945 ogivas, um terço na Europa, outro terço no Extremo Oriente e um terceiro nos Urais (prontos a serem rapidamente deslocalizados para onde fossem necessários).
Em maior detalhe nesta foto, o chamado PBV, do inglês “Post-Boost Bus”, e as três ogivas, cada uma com 175Kt, mais que suficiente para devastar uma cidade média. A maior parte dos mísseis deste género utiliza uma cobertura aerodinâmica para proteger as ogivas mas o SS-20 prefere ter tudo “á mostra”. A pintura amarela e vermelha não é operacional, provavelmente foi adicionada para propósitos de exposição.
Em resumo, o Saber podia não só ser usado como arma de retaliação como os seus antecessores (embora com muito maior precisão) mas, mais do que isso, permitia aos Soviéticos esboçar um devastador “first-strike”. Como vimos nos posts anteriores, a NATO previa ser forçada a usar armas nucleares de baixo rendimento para contrariar a enorme superioridade convencional Soviética. Por sua vez, a contra-resposta nuclear da Rússia poderia envolver o uso de mísseis Sandal ou Skean contra cidades Europeias (countervalue). Mas a rapidez de resposta do SS-20 (poucos minutos), mobilidade e precisão das múltiplas ogivas, oferecia aos Soviéticos uma fortíssima, e tentadora, opção de “first-strike”. Por outras palavras, antes da ofensiva por terra e ar, os Russos lançariam uma chuva de centenas de ogivas contra alvos militares na retaguarda da NATO (incluindo a eliminação das suas armas nucleares) e castrar completamente a capacidade de resposta da Aliança – as bases aéreas dos F-111 e depósitos de mísseis Lance, assim como postos de comando e centros de comunicações, por exemplo.
Nos seus dias, o SS-20 provocou um dos maiores calafrios à NATO e a herança tecnológica desta arma persiste até aos dias de hoje. O actual SS-25 Topol (Sickle), desenhado pelo mesmo Alexander Nadiradze, pode ser comparado a um SS-20 com um terceiro estágio.
Neste cenário, a NATO ficaria sem grandes soluções e sem meios para uma resposta “flexível”. Restariam os SLBM da USN com mísseis Poseidon e os Polaris da Royal Navy no Mar do Norte e no Atlântico – duas armas de “countervalue”, sem precisão para atacar alvos tácticos. A última e derradeira resposta seria um ataque maciço de ICBMs lançados dos EUA, convidando a inevitável chuva de ICBMs Russos em sentido contrário. A questão era; arriscariam os EUA fazer isso ou ponderariam limitar a guerra nuclear a uma Europa mergulhada num forno radioactivo?
Os Europeus precisavam urgentemente (ou desesperadamente?) de uma resposta perante a ameaça dos SS-20. E encontraram…duas.
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