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sábado, 18 de janeiro de 2014

A NOITE MAIS PERIGOSA DA MINHA GUERRA (M1386 - 21PM/2014)

Dornier DO-27 à descolagem em Guileje

Recordando a minha estadia de aviador por terras da Guiné, as missões preferidas eram as de DO-27, em especial as destinadas a apoiar os vários Batalhões, CAOPs, COPs e correlativos. Permitiam-me ver e conviver com o pessoal das “terras do fim do mundo”, ou como disse um escritor com laivos de Rambo e de memória baralhada, dos “cus de judas”.

Fazer embarcar os eventuais passageiros e carga, verificar se o peso a transportar estava dentro dos limites, verificar se os sacos do correio estavam na aeronave (a diferença entre ser bem ou mal recebido), descolagem logo pela fresquinha enquanto o calor não apertava, aterragem na sede do Batalhão, apresentação ao “Big Boss”: 
-Bom dia Sr. Major, apresenta-se o Tenente Piloto Aviador M.
E continuava: “... Conforme definido superiormente, o meu Major tem esta aeronave à sua disposição durante as próximas 4 horas ou 7 aterragens, o que se esgotar primeiro, para a utilizar na área do seu Batalhão da maneira que muito bem entender. A 8ª aterragem já será em Bissau, disponha como lhe aprouver...”

Dependendo da vontade, coragem ou preguiça do Major, umas vezes acabava por ficar as 4 horas sem nada fazer, ler um livrito à sombra de alguma árvore mais frondosa. Outras vezes passadas que ainda não eram duas horas, já tinha ido e vindo e tornado a ir e a vir... esgotado as aterragens e “ tenham um bom dia... ” rumo a Bissau. 
O limite das 7 aterragens tinha a ver com o acumular da fadiga do piloto versus a segurança de voo, já que havia pistas que nem ao mais pintado lembraria, alguns metros de largura, uns 200 de comprimento, algumas em curva, por vezes com vacas à mistura, o seu final com uma barreira de arame farpado ou mesmo a porta do quartel em cimento armado, “se não conseguir travar paciência, entro-lhes pela casa adentro, não me perguntem é pelo correio, que afino...”
E foi assim que conheci Bula, Binar, Biambe, Burutuma, Bigene, Bambadinca, Buba, Bedanda, Bissorã, Bissum, Binta… isto para só falar dos Bês.
Se a maior parte das vezes tudo corria pelo melhor, de vez em quando a coisa complicava-se, umas vezes por julgarem que o DO-27 era algo semelhante a uma Berliet, outras vezes por alguns Majores mais atrevidos não saberem contar de 1 a 7 (ou fingiam?) e em vez de reservarem a 7ª aterragem para o regresso à sua sede do Batalhão resolviam ainda ir aqui, ou ali, ou acolá; depois puxavam dos galões para que lhes fosse concedida uma aterragem extra: 
“ Ó nosso Tenente olhe lá, estou-lhe a dizer, vá-me levar de volta que aqui quem manda sou eu!!!”
E quando davam por ela já estavam no meio da placa da Base de Bissalanca, a deitar fumo pelas orelhas e a servirem de gozo aos Cabos da Força Aérea (FAP).

A partir Abril de 1973 e devido ao aumento da intensidade do conflito, deixei o DO-27 e passei a voar apenas o Fiat G.91. E se durante o resto da comissão e por inúmeras vezes lá fui passando por situações mais ou menos arriscadas, a noite de 23 de Junho foi certamente aquela em que o perigo me rondou mais de perto.
Recordemos, que havia já quase três meses que os mísseis Strela tinham aparecido nos céus da Guiné e até já tinha visto alguns a passarem bem perto. O pessoal do Guileje já tinha rompido aquele famoso cerco e executado a tal “retirada estratégica”, os de Guidage lá se tinham aguentado, o Exército já me tinha embrulhado num processo de averiguações por causa de umas Berliets estragadas lá para os lados de Binta, e o pessoal de Gadamael já se tinha espalhado e reagrupado. A calma a reaparecer aos poucos.

Nós, os da Força Aérea, é que andávamos um pouco baralhados da cabeça, porque das duas uma, ou a matemática tinha deixado de ser uma ciência exacta, ou então algo não batia certo.

Tudo isto porque apesar de no “Solar do Dez”, “Pelicano”, “Bento” e restantes cafés da má-língua constar que estávamos apavorados de medo e já não voávamos, no dia-a-dia continuávamos a executar missões atrás de missões, a um ritmo bem mais acelerado que anteriormente.
Uma coisa era certa, estávamos fartos de circular nas vizinhanças de alguns quartéis, a abrir clareiras na mata, a partir madeira e fazer barulho, fartos dos que diziam que já não os apoiávamos, (certamente deviam ser surdos, com tanto rebentamento ali mesmo nas suas barbas) e fartos dos que, sem nos saberem dar informações precisas, exigiam que bombardeássemos todas as matas à volta dos seus quartéis. Até que não podia ser. Cada bomba de 750 libras fazia um buraco no chão, onde podia caber à vontade um Unimog. A Guiné arriscava-se a ficar como um “queijo suíço”. Por outro lado estávamos absolutamente convencidos que as bases de fogo para os ataques a Guidaje, Guileje e Gadamael estavam situadas para lá da fronteira, já no território dos países vizinhos.

A razão era simples, se cada granada de morteiro pesava à volta de uns 15 quilos, cada ataque com 200 granadas (parece que era a medida standard) equivalia a utilizarem 3 toneladas de munições, demasiado peso para andar a ser transportado às costas e ainda por cima por trilhos pelo meio da floresta. Precisavam de algumas viaturas de carga e uma estrada por onde circular.
Por essas razões e apesar de não termos os passaportes em dia, o General Spínola até já nos tinha deixado ir cumprimentar os nossos amigos ao estrangeiro, a Kambera, Kumbamori e Kandiafara.

Os de Kambera não tinham sido muito calorosos a "receber-nos", ficaram chateados por lá termos ido logo a seguir ao almoço. O pessoal devia estar a dormir a sesta. Tinham lá alguns cubanos a passar férias que nos devem ter gritado alguns piropos do tipo “gilipollas de mierda... no me toques el coño”...

E até aconteceram umas cenas engraçadas e com uma certa ligação bíblica, um amigo meu ao querer afundar a barcaça que fazia a cambança do rio (que teria uns 90 metros de largura) errou a pontaria e acertou... no rio. Ainda assim não tinha havido nenhum problema. Durante alguns segundos e tal como Moisés quando quis atravessar o Mar Vermelho, a água desapareceu por completo, ficou só o fundo lodoso bem à vista. Depois, quando a água regressou tipo tsunami, foi a vez da barcaça desaparecer.

Em Kumbamori tínhamos participado numa excursão conjunta com o pessoal de terra. Sabem como é aquele ditado, meias só para as pernas, uns a trabalhar e outros a ficarem com a fama e o proveito.

Já os de Kandiafara tinham-nos "recebido" muito bem, com “fogo-de-artifício” e tudo. Ficaram surpreendidos já que não esperavam que viéssemos de tão longe só para os cumprimentar, grande alegria por nos verem, a foguetada parecia daquelas festas lá para o Minho, no fim até nos agradeceram, tínhamos lá deixado 36 buracos (ainda que um pouco grandes). Num futuro próximo bastava-lhes juntar um “Drive Range” e um Bar e tinham ali de imediato dois belos campos de golf. Até já estou a imaginar, o “KANDY COUNTRY CLUB (Members Only)”.

Voltando ao sábado 23 de Junho, era necessário fazer diminuir a tensão acumulada nos últimos tempos. O pessoal estava a ficar um pouco “cacimbado” (se fosse hoje dizíamos “com stress pós-traumático”) pelo que, muito em segredo foi planeada uma grande operação envolvendo todo o pessoal do Grupo Operacional. Pilotos, mecânicos da linha da frente, pessoal da manutenção, bombeiros e enfermeiras pára-quedistas, para o caso de uma eventual evacuação.

Como sabem, toda a operação que se preze tem que ter um nome de código que a identifique, ainda pensámos em “Granito” ou “Basalto”, logo nos disseram que operações com nomes de pedras nem pensar, estavam reservados para algum VIP, optámos por algo mais singelo: “Guerra é guerra e que ninguém se balde”. 
O sinal para o início da movimentação das tropas seria dado com a chegada, tão discreta quanto possível, de um avião Noratlas vindo de Lisboa. E ele acabou por aterrar em Bissau ao alvorecer do dia 23 de Junho, com a sua carga ultra-secreta, estacionando em local fora do habitual para não dar nas vistas, descarregando de imediato inúmeras caixas de madeira devidamente acondicionadas e tapadas para que ninguém visse com que tipo de munições iríamos atacar o inimigo. 
Logo pensaram os mais politizados que devia ser alguma nova arma secreta, provavelmente proibida pela Convenção de Genebra. Tinha de ser algo bem pior que o napalm, que, ao contrário do que constava nos cafés, até nem era proibido (só o passou a ser a partir de 1983). 
E que impropérios diria lá na sua rádio argelina aquele gajo de voz grossa quando soubesse da marosca?

Sem preocupações com todos estes pruridos, de imediato a máquina militar se pôs em movimento, ordens e contra-ordens à boa maneira portuguesa, os do QP a mandar, os Milicianos a vergar a mola. Durante a tarde instalaram-se os assadores típicos da FAP (meio bidon a trabalhar a carvão e a combustível de avião JP4), descascaram-se as batatas, prepararam-se o tinto e as saladas... Ao inicio da noite e após um very-light para sinalizar o local do objectivo, ouviu-se finalmente o sinal de chamamento para o ataque, “Horrendo, Fero, Ingente e Temeroso”.

Rapidamente manobrámos pelo fogo e pela manobra, tal como tínhamos aprendido nos compêndios militares, as sardinhas saltavam das caixas de madeira para os assadores, daí para o pão ou prato conforme o treino do combatente. Tiro e queda, limpar a arma e re-municiar de imediato, as “bazucas da Sagres” em disparos sucessivos, os invólucros a espalharem-se por todo o lado, as ordens a ecoarem: “Ninguém manda alto ao fogo que o inimigo tá bravo”. 
A noite correu pelo melhor, comeu-se, bebeu-se e conviveu-se como só se conseguia conviver nas noites africanas.

À volta dos assadores encontrámo-nos quase todos. O Coronel, os Majores (um deles do Exército, sortudo, fazia de oficial de ligação), Tenentes, Furriéis, Cabos e Soldados, que na Força Aérea sempre foi assim, “serviço é serviço e conhaque é conhaque”.
Ausências notadas foram a do nosso Comandante, Tenente-coronel Almeida Brito, o Maj. Mantovani Filipe (nosso oficial de ligação junto do QG), os Furriéis João Baltazar e António Ferreira e o Cabo Cóias, todos eles abatidos por mísseis Strela há menos de dois meses. 
Já me esquecia, faltou também o meu amigo Miguel Pessoa. Até tínhamos ficado um bocado chateados com o tipo, tinha deixado um avião todo partido lá no meio do mato e com medo de ser admoestado tinha passado uma noite escondido e fora de casa, quando afinal nós até lhe queríamos oferecer umas férias na Metrópole.
E mais, já com o bilhete no bolso e tendo conseguido algures uma garrafa de espumante, nem sequer a tinha bebido com os amigalhaços... avarento, semítico e mal agradecido! 
Mas afinal não era de estranhar que volta e meia se notasse uma ou outra "ausência" a estes eventos, já que na Força Aérea íamos todos à guerra, todos os dias, do Coronel ao Alferes, do Sargento ao Cabo, quer fossemos do QP ou Milicianos, homens ou mulheres.

Voltando ao combate da Bissalanca, uma verdade indiscutível é que depois de uma sardinhada é sempre necessário uma bebida forte, branca de preferência, sem a qual a digestão se torna lenta e difícil. Lá para o fim do repasto, o 1º Cabo Hélder, um dos meus mecânicos do Fiat G.91, chamou-me a um canto para que provasse a aguardente especial que a família lhe tinha mandado lá da terra. Apenas saído desta prova e já o nosso amigo e futuro bloguista Victor Barata, não querendo ficar mal visto perante o pessoal das aeronaves de caça (sempre as rivalidades), me apresentou um medronho de primeira. E depois foi o Miguel e o Mário, e o Correia, igualmente Cabos da Linha da Frente e a quem eu todos os dias confiava a vida ao entrar para um Fiat G.91 por eles devidamente abastecido, municiado e inspeccionado. Cada um deles a tentar demonstrar que os bagaços das suas terras eram bem melhores que os restantes.

Por volta da meia-noite, a batalha estava terminada, o inimigo completamente destroçado, era tempo de ir dormir, que no dia seguinte e apesar de ser domingo, a outra guerra continuava. 
Só que depois de ter passado quase um ano a dormir no “Biafra” da Base, a minha cama estava agora a uns bons dez quilómetros de distancia, tinha passado a viver em Bissau. As razões que me levaram a fazer a troca foram duas: o ter constatado que nos últimos seis meses só tinha jantado “francesinhas” e, já que vivia na base, estar permanentemente de serviço, com alvorada às 05:30 (... já que moras na base ficas de alerta!!)

O regresso a casa não tinha qualquer problema, já que tinha como meio de transporte a minha moto, uma bela, potente e roxa Yamaha 200 a 2 tempos, comprada com 16 notas da Metrópole, ali para os lados do que chamávamos a Av. da Liberdade (a que ia do Palácio do Governador ao cais).

Cabe aqui um outro parêntesis para informar que a primeira vez que andei de moto foi no dia que a fui buscar ao stand. Ao pretender saber como se metiam as mudanças o vendedor tão assustado que não ma queria vender. Só as D. Marias entregues ali mesmo e no momento o descansaram. “Ó homem deixe-se de merdices, abra lá a porta do stand e saia-me da frente”.
E assim entrei na confusão do trânsito de Bissau.

Voltando à história, ainda estive uma meia hora recostado naquelas grandes valas que existiam na Base para escoar a água das chuvas, a ver se conseguia contar as estrelas, que a maior parte delas não paravam de oscilar. A ideia era tentar alinhar os gyros e decidir se havia de me meter ao caminho ou não. O problema não era o balão, que nesse tempo não existia, nem as estrelas aos saltos, mas sim o estranho caso da estrada estar a ficar ondulada, tipo jibóia (e não me venham cá dizer que não há jibóias na Guiné, que eu até as vi). Após profunda meditação e analisando os prós e os contras, resolvi meter-me ao caminho.

Lembro-me apenas de sair à porta de armas e de algum tempo mais tarde ter passado junto a um ou dois quartéis que existiam à beira da estrada, poucas referências para o trajecto de cerca de dez quilómetros. Enquanto circulava de gás à tábua, o meu pensamento não parava de me alertar para que ao chegar ao destino tinha que travar, travar... travar. 
E assim aconteceu, para além dos mosquitos, moscardos e correlativos a esborracharem-se com fragor no capacete, consegui fazer o percurso sem bater em nada nem em ninguém (ou não fosse eu um piloto de caça).

A terceira referência da viagem foi a porta do meu apartamento onde, a travar, a travar, acabei por vir a bater já muito devagarinho, mas ainda assim com algum estrondo. E tão contente fiquei de ter chegado (e parado) que nem sequer me lembrei que, como passo seguinte, tinha de pôr os pés no chão, trambolhão da moto abaixo, a 0km/h.

Na manhã seguinte fui voar com um braço todo entrapado e umas pastilhas para as dores, tomadas numa auto-medicação bem à revelia do médico, que um dos ombros estava em mau estado.
Felizmente que foi um dia muito calmo, acabei por só fazer uma missão, 40 minutos de voo, 2 bombas de 750 libras algures na Guiné, mais 2 buracos dos grandes, os que sabiam que os continuávamos a apoiar devem-nas ter ouvido... os outros certamente que não.

Hoje, passados 40 anos o vício das motos ficou, trambolhões só dei mais um, também a 0 km/h.
E ficou a saudade dos bons momentos passados na Base da Bissalanca.

Um Abraço,
António Martins de Matos
Ten PilAv da BA12


NOTA: As memórias do Gen. Martins de Matos foram publicadas no livro "Voando sobre um ninho de Strelas" disponível através da loja do Pássaro de Ferro


sábado, 16 de novembro de 2013

DESPEDIDA EM NORATLAS (M1273 - 344PM/2013)

Nord N-2501 Noratlas no AB3 - Negage                                                    Foto: Autor desconhecido

Aterragem surpresa

A Esquadra 92 (Luanda) efetuava missões de transporte com maior frequência para o Norte de Angola. Um dos locais mais assíduos era o AB3 – Negage.
Uma dia ao chegar ao destino, num dia de sol esplendoroso, o aeródromo estava tapado com uma camada de nuvens, tipo nevoeiro, teimosamente agarrado ao solo. Já estava para seguir outro destino, quando descubro a ponta da pista a descoberto – quando muito 100 metros mesmo no início da pista.
Informo a Torre que vou tentar. Assim fiz. Mal toquei na pista, fiquei dentro do nevoeiro, mas com a iluminação ligada, a rolagem  foi normal. Segui para o estacionamento.
Aí a surpresa era geral – ninguém se tinha apercebido da aterragem e ainda menos que fosse possível naquelas condições.
Julgo que me consideraram um “herói”… Mas a pista estava lá e … visível.

Nossa Senhora do Ar

Em 2 de novembro de 1975, ainda na BA9 (Luanda), estou encarregado de trazer o último Noratlas - 6415 - de regresso a Portugal.
A Base está praticamente deserta. Resolvo dar uma volta pelas instalações da Esquadra, despedindo-me daquela casa e, quem sabe, encontrar alguma recordação.
Fui bafejado pela "sorte".

Na parede do bar da Esquadra encontrava-se uma imagem que diz alguma coisa aos aviadores e, ainda hoje, se encontra no meu quarto.
Imagem de Nossa Senhora do Ar.

Legenda acrescentada à mão: "Perdoai-lhes porque eles não sabem o que fazem…"


Tenham atenção à legenda que alguém teve a liberdade de escrever e que sempre teve muito de verdade...
Assim, permito-me, apelando a Nª Sª do Ar, desejar felicidades a todos.


Texto: Cap. (Ref) Fernando Moutinho

sábado, 12 de outubro de 2013

CONSTIPAÇÃO A 12.000 METROS (M1207 - 291PM/2013)

North American F-86F Sabre      Foto: AHFA

Algumas condições um pouco especiais levaram a uma situação muito difícil. Antes de relatar o caso em concreto, gostaria de chamar a atenção para as complicações que podem resultar para o sistema auditivo do pessoal navegante, a partir duma simples constipação.
O sistema auditivo está ligado à garganta pela “Trompa de Eustáquio” ou seja, um canal que permite o equilíbrio da pressão atmosférica, dentro do ouvido. Sempre que há variação de pressão atmosférica, sentimos, em especial a descer, um ensurdecimento ligeiro, que desaparece utilizando a chamada “Manobra de Valsalva”.
Quem nunca experimentou, num automóvel, numa descida acentuada, essa leve pressão e ligeira surdez nos ouvidos? Para a resolver basta, normalmente, engolir em seco.
Num avião este fenómeno acentua-se como se compreenderá. A Trompa de Eustáquio tem uma forma que facilita a saída do ar para restabelecer a pressão atmosférica no interior do ouvido, mas é mais difícil a entrada para restabelecer esse mesmo equilíbrio se, a Trompa estiver afetada por infeção na garganta, como por exemplo, uma simples constipação.
Nos aviões comerciais a pressão na cabina é normalmente equivalente a 2000 a 3000 metros, de onde se compreende que o problema é menos grave mas, nos aviões militares do meu tempo, naqueles que tinham sistemas de pressurização, a altitudes de cruzeiro elevadas (10.000 a 13.000 metros) a altitude de cabine rondaria os 7000 metros, com variações, é claro. Isto em voos normais. Mas o que pode suceder com falha na pressurização? Muito simplesmente, sem problemas se a garganta estiver normal mas, complicadíssimo, em caso de afeção.

Eis o que se passou comigo.

Numa esquadrilha de quatro F-86, saímos de Monte Real para uma viagem de treino para o estrangeiro. Até aí tudo bem. 
Mas, aquando do regresso, já em Chateauroux, senti-me constipado e fomos – eu e o Comandante da Esquadrilha – ao médico para as devidas medidas. Analisou-me e deu-me umas gotas para utilizar. Fiquei com medo de regressar, porque sabia que seria complicado. Mas, perante a não proibição do médico, teria que realizar o regresso. Descolámos com rumo a Monte Real. 
A subir, como expliquei antes, nada de especial se passou, mas de acordo com um ditado popular – um mal nunca vem só - tive uma avaria no alternador, que como o nome indica, me retirou a energia alterna.
Consequências diretas: fiquei sem radiocomunicações (comunicávamos por sinais), fiquei sem controlo automático de aquecimento e... sem pressurização! 
Sem pressurização e a voar 12.000 metros. Fiquei preocupadíssimo. O tempo estava bastante nublado e até tempestuoso. Voávamos dentro de nuvens. Já perto de Monte Real iniciámos a descida. Nos primeiros metros ainda restabeleci o equilíbrio auditivo, mas depois as coisas complicaram-se. Comecei a ter perturbações e deformações de visão. Como voávamos em formação cerrada, dentro de nuvens, teria de manter a posição a todo o custo, porque ainda tinha outro avião a meu lado. Ao aproximarmo-nos dos 4000 metros (já não é necessário oxigénio), em desespero, arranco a máscara e pressionando as narinas, faço a dita Manobra de Valsalva, que resultou, com os ouvidos a restabelecerem a pressão. 
Foi um alívio extraordinário mas momentâneo, pois continuávamos a descer. Não mais consegui restabelecer a pressão no canal auditivo. Mesmo com mau tempo, consegui aterrar, mas vinha num estado lastimoso. No estacionamento, após parar o avião, ainda consegui descer as escadas, mas no solo, encostei-me ao avião e desmaiei. Por pouco tempo, mas fui-me "abaixo das canetas". Estava em estado de choque.
Enfermaria, médico e outra Valsalva na enfermaria, que atenuou um pouco a minha situação. De seguida Hospital da Estrela, seguindo-se mais um mês, até recuperar a normalidade.
Foi um dos meus piores pesadelos. Volto a repetir: só foi difícil, por estar constipado, porque como conto noutro local, já voei durante algum tempo a 14.000 metros sem pressurização, com um rombo na cabine e desci sem problemas, uma vez que estava bem de saúde. 
Uma boa condição da garganta/ouvidos para o pessoal navegante é essencial.

Agora para aligeirar, vou referir uma panaceia usada pelo pessoal em Angola, para fazer frente ou atenuar aquele problema. 
Durante o período que estive em Angola a voar no Noratlas, por vezes saíamos por vários dias. Como não éramos imunes às afeções na garganta, sucedia que ligeiras anomalias nos complicavam a vida. Por ter lido algures, comecei a utilizar uma técnica “caseira” – aspirava uma a duas gotas de limão por cada narina até chegarem à garganta e aí poderem atuar como desifetante. 
Não me curavam plenamente, mas atenuavam os efeitos da afeção. 
Esta panaceia começou a ser adaptada pelos outros pilotos e ainda hoje a utilizo com algum sucesso.Mas no geral, posso gabar-me de um historial quanto a saúde quase irrelevante, durante a minha carreira como piloto. Felizmente.

Texto: Cap. (Ref) Fernando Moutinho

sábado, 5 de outubro de 2013

PASSAGEIROS A MAIS (M1200 - 289PM/2013)


Noratlas   Foto: Autor desconhecido

Num fim de tarde em Nova Lisboa, para mais uma missão de transporte de refugiados para Luanda, tinha ido à Torre tratar do Plano de Voo, quando ao chegar perto do avião um membro da tripulação diz-me aflito: “meu capitão, tomaram-nos o avião!”
Devido a normas de segurança só devíamos transportar o número de passageiros de acordo com os bancos (de lona) disponíveis. O resto do peso disponível seria para carga.
Como estava a anoitecer, um grupo grande de refugiados – nunca cheguei a saber quantos, nem quis saber – vendo naquele último voo do dia a salvação, pura e simplesmente assaltaram-no e entraram todos, ocupando tudo que era sítio e inclusive a cabina de voo.
Perante a situação, reuni a tripulação. Não os poderíamos tirar à força – não havia como e o desespero daquele gente era evidente.
Havia riscos para os transportar – passageiros a mais e consequentemente, também peso a mais, atendendo, à altitude do aeródromo.
Era um avião sem reatores auxiliares (NR: Noratlas modelo 2501).
Ouvi todos, que unanimemente, me disseram: vamos arriscar…
Perante esta posição disse algo parecido como: “é por uma boa causa" e olhando para o céu, em jeito de prece acrescentei: "alguém lá em cima cuidará de nós”.
Para pôr a medida em prática e como havia gente sentada e de pé (tipo autocarro) subi nas traseiras do avião. Selecionei três homens mais fortes e obrigando-os a darem as mãos, exigi que me prometessem a não deixar ninguém passar dali, caso contrário, desequilibravam o avião e seria o fim. Depois fui até à cabine, perorei com os que lá estavam, prometendo que iríamos todos, mas teriam de sair para permitir que os tripulantes ocupassem os seus lugares. Saíram. Ocupámos os nossos postos, voltaram a entrar, fechámos o avião e toca a pôr em marcha a máquina. 
De pé na cabine, além dos tripulantes, seguiam sete passageiros.
Descolámos e correu tudo bem. As nossas preces foram atendidas. Descolamos e aterramos em segurança.
Sem dúvida que o Noratlas foi uma máquina excepcional… Deixou-me saudades e belíssimas e compensadoras recordações.


Texto: Cap. (Ref) Fernando Moutinho


sábado, 27 de julho de 2013

QUESTÕES DE PESO (M1097 - 216PM/2013)

Versão N-2502 com reatores na ponta das asas   Foto: Col. Fernando Moutinho

Peso a mais à descolagem

Pouco depois da independência da Guiné, ainda estava nas OGMA, fui encarregado de transportar de Bissau para Alverca uma máquina ferramenta, de elevado valor pertencente às OGMA. Antes de sair contactei um dos principais responsáveis da secção, para saber o peso da dita máquina. Foi-me indicado cerca de 3.500 Kg.
Antes de sair de Bissau para o Sal, as autoridades locais perguntaram-me se tinha alguma disponibilidade de peso até ao Sal. Disponibilizei, como segurança, carga até 1000 Kg e cinco passageiros. Assim se fez. Teoricamente estaríamos abaixo do peso máximo à descolagem.
Este Nord, o 6415, do tipo 2502 (com motores de jato auxiliares), era um pouco ronceiro, mas cumpria as suas missões, sempre sem problemas.
Tempo quente. Reatores e motores no máximo, e toca a descolar.
A meio da pista apercebi-me que algo estava errado: peso a mais!
Tinha de decidir: abortar a descolagem ou continuar.
Abortando, corria o risco de não ter pista suficiente para travar, tendo em atenção a inércia aumentada pelo peso. Além disso, havia água à frente.
Repito: calor, sem reversível, muito peso. Os travões poderiam ser insuficientes.
Resolvi continuar, tendo em conta que na aterragem o peso estaria diminuído devido ao consumo do combustível na rota.
Acabei por sair do chão e, muito lentamente, comecei a subir.
Normalmente os procedimentos indicavam a utilização dos reatores até 3.000 pés, mas mantive-os ligados até longos minutos depois, até atingir a altitude cruzeiro, aos 7000 pés. Nesta altitude tive de manter um regime de motor mais elevado do que o normal, para poder obter uma velocidade de cruzeiro menos má.
Quando passámos ao largo de Dakar já conseguia voar à potência normal.
Claro que na aterragem, na ilha do Sal, ainda teria peso a mais.
Teve de ser feita uma aterragem para "senhoras grávidas".
A pista era longa, permitindo uma aterragem cuidada. Correu bem.
Para concluir, ao chegar a Alverca, além de chamar à responsabilidade quem me indicou o peso da máquina, exigi que na presença dele fosse pesada a dita. "Só" pesava mais de 7000 Kg.
Tinha descolado com, pelo menos, 2000 kgs a mais…

Calhaus com olhos

Versão N-2501 sem reatores         Foto: Col. Fernando Moutinho

Em, fins de Novembro de 1971, fomos incumbidos de transportar um grupo de "páras" para Ninda (Angola).
Como era costume tínhamos de ter muito cuidado com o peso do pessoal equipados para operações. Nestas missões o peso é que contava e por vezes apareciam com peso excessivo. Era, como não podia deixar de ser, um problema de segurança de operação do avião.
Ora, nesse dia o percurso para Ninda foi feito pelo 2º piloto, de acordo com a alternância de percursos.
Quando estávamos na fase de "arredondar" o 2º piloto começa a gritar "ai, ai, ai" e, virando-se para mim diz "agarra no manche, ajuda-me, que não consigo aterrar!"
Imediatamente deitei as mãos e juntamente com ele, em vez do normal movimento de trazer o manche atrás, fomos obrigados a fazer força para a frente, até poisarmos o avião.
Berrei para o mecânico, que fosse lá atrás chamar os pára-quedistas para a frente, porque receava que o avião assentasse a cauda antes, ou ao parar. O que sucedeu, foi que pura e simplesmente ao sentirem que estavam a chegar ao solo, começaram a movimentar-se para a cauda.
Para remediar, utilizei uma técnica, uma travadela em força, que com a inércia os levou de roldão em direção do nariz.
Custou-me a perdoar esta insensatez porque eram homens da mesma arma e sabedores de certas regras que tinham de cumprir.
A expressão "calhaus com olhos" assenta por isso como uma luva. Pode parecer depreciativa, mas é na verdade afetiva.


Texto: Cap. (Ref.) Fernando Moutinho

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